por Pablo Lima
Aos 22 minutos do segundo tempo, o placar eletrônico do Maracanã divulgou o público presente na final da Copa América de 1989: 148.068 torcedores. A vitória brasileira sobre os uruguaios aconteceu no dia 16 de julho e seria vista por muitos como revanche de outra final, 39 anos antes, também em um 16 de julho e com público ainda mais estrondoso: cerca de 200 mil torcedores assistiram ao bi mundial uruguaio pelos pés de Gigghia, Schiaffino & cia sobre o Brasil na final do Mundial de 1950.
Um outro 16 de julho, agora em 2017, não teve Maracanã e a cidade do Rio de Janeiro não recebeu a seleção brasileira e nem uruguaios. Muito menos: no estádio também não teve torcida, nem gols, nem nada.
Ironicamente, a data em que uma partida de futebol recebeu seu maior público da história amargou, 67 anos depois, a ausência total de torcedores em um jogo oficial. Se em 50 choramos pela derrota e em 89 a tarde foi de regojizo, em 2017 não houve drama nem festa: só silêncio.
Vasco e Santos entraram em campo pelo Campeonato Brasileiro com a triste missão de encarar um Engenhão vazio, de portões fechados aos torcedores, impedidos de assistir ao jogo por conta de episódios de violência. Há duas semanas, no clássico Vasco e Flamengo, em São Januário, torcedores entraram em confronto com policiais e entre si mesmos, e um deles acabou sendo assassinado nos arredores do estádio. E nessa o Vasco da Gama foi proibido de ter público em jogos realizados na cidade. E o agora silencioso clássico,o belíssimo Santos versus Vasco de outrora, repleto de histórias marcantes e personagens históricos – uma delas presenciou o milésimo gol do rei do futebol – fechou a porta para suas testemunhas mais ilustres.
Estádios foram feitos para multidões. Contrariar isso é viver do avesso, é estar em desacordo com as leis da natureza. Jogo de futebol sem torcida é vida sem propósito, como o arco com flecha não lançada: é navio ancorado no porto, sem licença para navegar; é típico de pássaro sem voo, árvore sem fruto. É como se o mundo parasse, em um tempo dominado pela pausa: relógios com ponteiros sem movimento.
No futebol, torcedor é da esfera do sagrado, do visceral e do indispensável. É aquele que vai do radinho de pilha ao aparelho de telefone mais moderno, o que transita entre o chinelo atirado no treinador e o que invade o campo para abraçar o ídolo.
São os “torcedores por conta própria”, do Mário Filho*; ou os “pobres-diabos”, de José Lins do Rego*. Torcedor é o fôlego fiel que falta ao time sem forças em campo, é a última voz que exige o gol nos acréscimos, ainda que ilegal. É o suprassumo da energia que jamais se cala, mesmo impotente diante da batalha perdida.
E se o torcedor é o todo, é a própria instituição, é o próprio futebol em si, algo está fora de ordem com ele ausente.
“De todos os empates, o mais exasperante é o de 0 X 0. O torcedor se sente roubado no dinheiro da entrada e inclinado a chamar os jogadores, o juiz e o bandeirinha de vigaristas”, emplacou certa vez Nelson Rodrigues. Mas no último domingo o que menos importou foi o placar, porque não havia quem se sentisse roubado. O estádio calado se curvou a uma medida judicial, ao palco sem plateia. E o escore zerado não teve torcida para humilhar. E por mais que tentassem, os jogadores, passados de ofensores a ofendidos, jamais conseguiriam sair do zero com tanto espaço vazio e silêncios no lugar das multidões imortais.
Que venham novos 16 de julhos, e nunca mais vazios de gente, de alma e de existência.
* “Torcedores por conta própria, que não se integram na multidão, que não se perdem no meio da multidão, que se destacam, conservando a personalidade”, Mário Filho, cronista esportivo.
* “Vou ao futebol,e sofro como um pobre-diabo”, José Lins do Rego, escritor brasileiro.
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