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CARNAVAL E OUTRAS HISTÓRIAS

22 / fevereiro / 2023

por Rubens Lemos

Andávamos em pequenos bandos sem destino pelas ruas do Tirol. De todos os moleques, eu respirava futebol por ser o único brinquedo permitido e havia decidido, comigo mesmo, fazer do velho Estádio Juvenal Lamartine meu refúgio. Quantas e quantas vezes fui até o JL apenas para contemplá-lo e imaginar as jogadas dos craques fundamentais de sua história.

Quando estava sozinho, ocupava a arquibancada sempre vazia do lado esquerdo da Tribuna de Honra para quem entrava pelo portão principal. Lá, me entregava a devaneios. Desenhava sonhos ouvindo na imaginação, a gritaria de torcedores ausentes nas jogadas dos ídolos de chuteiras penduradas ou mortos.

O início dos anos 1980 foi fundamental para mim. Aos 10 anos, comecei, de fato, a me descobrir. Era um corriqueiro, um trivial, alguém despercebido em qualquer aglomeração mínima. No deserto do estádio que parecia cemitério de glórias, me via aconchegado, encorajado pelos que ali brilharam e saíram da história para desaparecer na vida.

Então, praguejava os domingos de carnaval. Praguejava o carnaval inteiro que nos deixava, a mim, a minha avó, os meus irmãos e a minha mãe, ilhados na velha casa, cidadela de nossa sobrevivência. Muitos iam às praias, outros saíam em blocos de carnaval de elite, onde se agrupava a juventude aquinhoada da cidade.

Domingo de carnaval, o Juvenal Lamartine, sempre com uma pelada a compensar meu isolamento, também estava fechado. Acreditem, passava alguns longos minutos parado em frente à bilheteria quebrada em algum jogo dos anos 1960 até 1972, ano em que oficialmente o mundo da bola mudou-se de armas, bagagens, jogadores e torcedores para o Castelão, o colosso da Lagoa Nova, distante de onde morava.

O que fazer na monotonia de um carnaval sem sabor? Mexia no controle da televisão, desprezava a programação festiva e procurava algo para ler. Sei que me dedicava à antiga e majestosa Enciclopédia Barsa, pobre luxo consentido à nossa família de classe média abaixo da baixa.

Levado por alguns colegas de rua, mais conformados do que eu, saía desanimado para assistir os preparativos da juventude hoje na casa dos 60 anos em alegorias iguais. A diferença estava no desenho de cada bloco. Lembro-me de quatro: Saca-Rolha, Bakulejo, Ressaca e Puxa-Saco.

Era um movimento próximo ao tédio em que vivia. Os blocos circulavam pelo Tirol, invadiam casas de gente rica nos famosos assaltos e seguiam para o desembocar triunfal na suntuosa sede do América, na Avenida Rodrigues Alves, hoje um fantasma das noites intermináveis de folia.

Via alguns conhecidos nos blocos, cogitava acenar para eles, mas perguntava o motivo. Por que me comunicar com quem estava entregue à esbórnia? Dominado pelo álcool e substâncias proibidas como o Cheirinho da Loló, que chegou a matar do coração um jovem de 18 anos, jogador da seleção potiguar de voleibol.

Eles viviam um mundo e o meu planeta era outro, estava em recesso por quatro longos dias, que pareciam 400 para um garoto simplesmente fascinado pelo jogo de bola, da pior qualidade ao clássico ABC x América.

A rotina anual me cansava e minha tristeza surgia 10 dias antes. Até que uma tragédia sacudiu a cidade e silenciou as orquestras. Um ônibus foi jogado sobre uma pequena multidão na Avenida Rio Branco, matando 19 pessoas.

Mesmo com a dor multiplicada e o cheiro de morte empestando Natal, os mortos foram esquecidos e o carnaval de rua aconteceu naquele fatídico 1984, quando estava com 14 anos incompletos. A decisão de manter a festa me deu engulhos de revolta. As vitimas nem haviam esfriado e os vivos comemoravam numa demonstração clara de que quem morre, se estrepa.

Eram assim meus carnavais de adolescente. Mornos. Até que na quarta-feira de cinzas, reabriam o Juvenal Lamartine à noite para uma pelada da segunda divisão, para mim, o maior clássico do mundo.

Mamãe tentava proibir minha saída à noite, vovó avalizava (ela nunca deixou de estar comigo). Revia o futebol, na iluminação sombria do Juvenal Lamartine. Em silêncio, por dentro da alma, ali estava o carnaval só meu. Óbvio e, confesso, egoísta.

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