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Búfalo Gil

9 / janeiro / 2016

BÚFALO TRICOLOR

texto: Wilson Aquino | fotos: Marcelo Tabach

Era uma constelação! Rivellino, Paulo Cezar Caju, Carlos Alberto Pintinho, Carlos Alberto Torres, Dirceu, Manfrini, Doval e, entre tantos craques consagrados, um moleque atrevido de 24 anos: Gil. Búfalo Gil.

Eu não sei vocês, mas sempre que ia ver o Fluminense jogar, naqueles anos de 1975 e 76, tinha duas certezas: comer um Geneal e ver um gol do Gil. Eu e todo o Maracanã sabíamos que quando o Rivellino pegasse uma bola livre, na intermediária do Flu, soltaria um pombo sem asa que atravessaria mais de 50 metros de campo até pousar nos pés do Gil. Aí, amigo, sai da frente do Búfalo. O cara era forte pra Búfalo! O bruto jogava sem atadura, caneleira ou qualquer proteção. Era só meião e chuteira. Quando ele cortava pro meio, soltava uma bomba indefensável de canhota.

Todo mundo sabia disso. O que ninguém sabia era como evitar.

Mas, como nasceu a jogada fatal?

Quem chutar que foi meio sem querer, acertou.

Búfalo Gil, uma das principais peças da Máquina de jogar futebol, conta como foi. 

Prestes a completar 65 anos, ele hoje leva uma vida pacata, em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Mas, continua batendo duas peladinhas por semana. “Depois que o cara para de jogar, ele se torna peladeiro. ‘Da pelada viestes, à pelada voltarás’. Eu comecei na pelada, no campinho de terra batida”.

OS SEGREDOS DA MÁQUINA

Quando o Fluminense contratou Rivellino, em 1975, Gil estava no clube há quase dois anos. Ele veio do Vila Nova, de Minas Gerais, para ser centroavante. Nunca passou por sua cabeça que um dia viraria ponteiro. Gil sempre fez muitos gols, desde os tempos de juvenil no Cruzeiro. No Carioca de 1974, sua primeira temporada no Flu, terminou em quinto lugar na artilharia, com 11 gols. Perdeu para jogadores do naipe de Luisinho, do América (20 gols), Zico (19), Nilson Dias, craque do Botafogo (18) e Roberto Dinamite (17). 

“Inclusive, na estreia do Rivellino,  joguei de centroavante. Cafuringa era o ponta direita”, lembra. A estreia de Rivellino foi no sábado de Carnaval de 1975 e na quinta-feira, a equipe se reapresentou. “Fomos treinar no CEFAM (Centro de Educação Física da Marinha) porque o campo das Laranjeiras era um curral. Aquilo não era um campo, era um pasto”.

Gil é assim mesmo. Não tem papas na língua.

O trajeto entre o clube, em Laranjeiras, e o CEFAM, na Avenida Brasil, Penha, era feito de Kombi. Difícil acreditar, mas o valioso time tricolor atravessava a cidade de Kombi!!!! “Eram duas Kombis. Uma levava a rouparia e a outra nos levava. Era um divertimento total”.

O treinador era Paulo Emílio, técnico muito sério, disciplinador, que não dava espaço para brincadeiras.

Durante o treino, o primeiro de Rivellino no Flu, o meio campo era Cléber, Pintinho e Rivellino. O ataque: Cafuringa, Gil e Mário Sérgio (Paulo Cezar Caju chegaria cerca de um mês depois).

A chegada de Rivellino mexeu um pouco com o ambiente do time. Não era para menos. Ele era o melhor do mundo.

“O Cléber (1954-2009) pegava a bola e só dava no Rivellino. Eu, atacante, saía daqui, ia ‘prali’, me deslocava pra cá, pra lá e nada. Não recebia. Comecei a discutir com ele. ‘Ô Bequinha, não é só o Rivelino que joga, não, malandro! Tem que dar a bola pra gente também’. Aí, ele me mandou para aquele lugar. E eu, ignorante por natureza, bruto igual a uma porta, sem pensar, mandei uma porrada nele”. Gil sentiu-se desafiado. Como um jogador mais novo cresceria em cima dele?

“Aí o Paulo Emílio botou a gente pra fora do treino. Isso na quinta-feira. Tinha jogo no domingo contra o Madureira, estreia do Cariocão. Fomos para o vestiário tomar banho, esfriamos a cabeça e acabou, morreu ali”.

Mas, não para o treinador.

Paulo Emílio não relacionou Cléber e Gil nem para o banco no jogo de estreia. 

“No vestiário sempre tinha um quadro que anunciava a convocação da concentração. A gente concentrava no Hotel Nacional, em São Conrado. E todo mundo olhava, né? Tinha trinta e tantos jogadores. Quando fui lá, o meu nome não estava. Nem olhei se o Cléber estava, mas meu nome não aparecia”.

No time da Máquina, entre os jogadores, todo mundo tinha apelido. O Cléber era “Bequinha”. O Gil, “Cabeça” e o capitão Assis, o “Cabeção”.  O Rivellino, obviamente, era o Bigode.

Como não estava relacionado, Gil pegou suas coisas e foi embora. Na saída do clube, deu de cara com o zagueiro capitão Assis. “Cabeça, o que houve?”. “Meu nome não está na lista”. Assis pediu a Gil para esperar. Foi lá e conferiu. Nem Cléber, nem Gil constavam na convocação. Assis interveio e Paulo Emílio voltou atrás. “Não gostei porque era bruto igual a uma porta e aquilo foi uma imposição de um amigo”.

Gil e Cléber dividiram o quarto na concentração. Mas, no dia do jogo:

“Fomos para o Maracanã. Chegamos no vestiário e o Ximbica (saudoso roupeiro do Flu)  estava com a lista na mão e me olhando: ‘Tá fora, hein, Cabeça! Você e o Bequinha estão fora’. O Ximbica era quem arrumava o material. Ele que contou pra gente. Peguei minha bolsa e fui saindo. E o Assis: ‘onde é que você vai, Gil?’ Vou sair fora, não vou jogar, nem no banco eu estou. Fomos pras cadeiras assistir o jogo. Aí, ganharam de 1 a 0 apertado, gol de Erivelton”.

O outro jogo foi contra o América. Gil e Cléber sentaram no banco. Mais de 100 mil torcedores no Maracanã e Gil se mordendo de raiva. “Se fosse parte técnica, você tinha que ficar calado. Mas não foi. Eu pensando comigo: se fosse o Riva, que era o top de linha do nosso time, ele não ia fazer isso”.

Começou o jogo. Aos seis minutos, 1 a 0 América. No ano anterior, o Flu tinha perdido todas para o América. Perder mais uma não estava nos planos.

“O América era um timaço. Tinha o Ivo, Bráulio, Luisinho, Tadeu, Flecha, Pires, Orlando Lelé. Eles tinham sido campeões da Taça Guanabara, de 1974, em cima do Fluminense. Gol do Orlando Lelé, de falta. Eu estava naquele jogo”. 

Gil nem se deu ao trabalho de calçar as chuteiras. Continuou sentado no banco, sem querer pensar no seu futuro como jogador do Fluminense. No intervalo, todos os atletas desceram para o vestiário. Menos ele.

Começou o segundo tempo e o América dominando o jogo.

De repente, o preparador físico Carlos Alberto Parreira chama os dois, Cléber e Gil. Naquele tempo não podia aquecer no gramado. 

“A gente tinha que descer naquele corredor, que fedia à urina, porque todo mundo nervoso, antes do jogo, fazia o ‘xixi do medo’. Todos os times mijavam ali. O jogador só se tranquiliza quando está dentro do campo. Fora é aquela tensão!”.

Mas quis o destino que quando Gil começasse a subir a escada saísse o gol do Fluminense. Manfrini de cabeça, aproveitando cruzamento de Marco Antonio.

E agora? O disciplinador Paulo Emílio tiraria o centroavante que acabara de fazer o gol para colocar um jogador rebelde?

Gil estava aquecendo à beira do gramado quando surge a dúvida: quem vai sair?

Gil pensou em Manfrini, mas Paulo Emílio gritou: “Gil, Gil, peraí!”.

Se o Paulo Emílio suspende a alteração, aquele talvez fosse o último jogo de Gil pelo Fluminense. 

“Peraí, o quê?”, questionou um Gil aflito.

“Não vai sair o Manfrini… é o Cafuringa. Joga pelo lado direito com o Manfrini na frente. Você é veloz, muito rápido, muito forte”.

Gil não entendeu nada. “A gente nunca tinha treinado isso. Só que o Rivellino é muito inteligente. Quando entrei no jogo, ele falou pra mim: ‘não fica aberto, não! Não vai no papo do treinador. Você não é ponta. Deixa o Manfrini com o lado esquerdo e do meio da área e o da direita é seu’.

Gil entrou aos 16 minutos do segundo tempo. Era domingo. Nove de março de 1975.

Oito minutos depois, Marco Antonio arrancou pelo lado esquerdo do campo e jogou a bola na área. Ela pegou uma curva. 

“Eu estava entre o bico da grande área e a marca do pênalti. Daquela posição, o normal seria pegar de direita. Eu peguei de canhota. Isso foi incrível! Foi o gol mais bonito que eu fiz na minha vida. Fiz muito gol de perna esquerda, mas, esse gol, do jeito que a bola veio… Ganhamos o jogo. Fui eleito o melhor da partida. Ganhei moto-rádio… ganhei até terno da Moreira-Ducal”.

E a Máquina engrenou a partir dali.

“O Rivellino dizia: ‘Cabeça, quando eu estiver te olhando, a bola não vai chegar. Porque quando eu te olhar, os caras te marcam. Eu vou olhar pro outro lado, mas vou meter a bola em você’. Isso é troço de gênio! É coisa de cara que é de outro planeta! Eu, malandramente, ficava entre o lateral esquerdo e o quarto zagueiro. Um olho no Rivellino e o outro na direção do gol. Pensava, quando ele meter a bola, até esse zagueiro virar, eu já ganhei dois, três metros. Aí ele metia como ninguém. E me ensinou outra coisa: a bola dele vinha rodando. Pra tu dominar era uma desgraça, malandro! Vinha igual a um pião. Um dia ele disse pra mim: ‘olha só, bola rodando não se domina!’. Olhei pra ele: Tá me sacaneando, porque teve uma jogada em que a bola fugiu. ‘Porra, Gil, não domina a porra da bola!’. Vou fazer o que então? ‘Só chapa a bola pra frente que acaba a rosca’. 

“Não me incomoda as pessoas falarem que sem o Rivellino, o Gil não seria o Gil. Mas eu faço questão de lembrar que já tinha saído do Fluminense há dois anos quando fui para Copa do Mundo”.

Gilberto Alves, o Búfalo Gil, foi o maior artilheiro da Máquina. Fez 58 gols nos dois anos que aquele time maravilhoso existiu. No total, entre 1974 e 1976, jogou 172 partidas pelo Flu e marcou 74 gols.

No final de 1976, Gil, Paulo Cezar Caju e Rodrigues Neto foram envolvidos no troca-troca com o Botafogo. Eles foram e o lateral esquerdo Marinho veio para o Flu. 

Gil seguiu carreira. Foi titular na Copa do Mundo de 1978, na Argentina. Jogou no Corinthians, no Múrcia, da Espanha, no Farense, de Portugal, e no Coritiba.

Fez 569 gols em 20 anos de carreira. Marcou em todos os times que jogou.  Mas, nunca esqueceu o Fluminense, seu time de coração.



Gil e Wilson Aquino


Gil e Marcelo Tabach

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