por André Felipe de Lima
O velho Antônio José da Guia só andava descalço. Não sabia ler nem escrever. Vivia para a plantação, para a esposa, dona Maria Pereira Ramos da Guia, com quem se casou no dia 25 de julho de 1891, e para os filhos do casal. Antes de chegar à cidade grande, trabalhava na roça, lá nas bandas da Fazenda Saião Velho, próxima à Bananal. Antônio nunca soube ao certo quantos anos tinha. Intuía oitenta, isso em 1951. “Sei lá! Eu sou diferente da maioria: porque conto os janeiros que tenho, a partir do dia em que me casei. No dia 25 de julho de 1891, meu pai fez os cálculos e disse ao escrivão Dr. Getúlio Macedo de Azeredo: ‘Tem tanto’. O ‘tanto’ de meu pai significava 21 carnavais completos. Podia não ter 21 carnavais. Mas como meu pai era seguro do cálculo, ninguém duvidava.”
A saga dos Da Guia, como narra o jornalista e pesquisador inglês Aidan Hamilton, começou na antiga lavoura. Antônio José relembrou com detalhes do pai, do avô: “Meu pai, como meu avô, trabalhava na Fazenda do Saião Velho, vizinho do Bananal. Meu pai era bem moço quando nasci. Nem devia ter 19 anos, enquanto meu avô andava beirando os 100. Pelo sim, pelo não, 100 carnavais de sol e eito […] Foi lá que nasci, sim senhor. E foi lá também que me iniciei no trabalho de campo, braço comprido e mão forte. Na roça, cavando terra, derrubando árvores, queimando e sulcando, plantando e colhendo, formei meu caráter e cimentei minha crença”.
O primeiro lugar que Antônio e Maria encontraram no Rio de Janeiro foi Bangu, no qual permaneceram. Chegaram no finzinho do século XIX ao bairro do subúrbio da cidade grande como uma “ave perdida”, como o próprio Antônio definiu. Bangu não tinha nada. Ou tinha. Muito campo, pasto, gado e taperas no mato, uma delas a primeira casa dos Da Guia no Rio. “Era no tempo do Coronel Carneiro e do Dr. Jorge Estrela, donos da tapera”, recordou o velho Antônio, que ao lado de sua Maria ficaram no casebre. No começo, foi um Deus nos acuda. Não havia casa decente, não havia serviço e nem quem pudesse indicar o Da Guia para algum trabalho.
Maria queria voltar para a fazenda. Seu Antônio ainda tinha esperança de que tudo melhoraria. Convenceu-a ficar ao seu lado. “Só que, vez por outra, tinha de ouvir o que muito me doía. Palavras assim: ‘Você já pensou, Antônio, já imaginou sério, como iremos matar a fome de nossos filhos?” Quando ela me fez a advertência pela primeira vez, fiquei maluco de contente”. Nas entrelinhas da bronca de dona Maria o aviso a Antônio de que teriam o primeiro filho.
Luiz Antônio da Guia foi o primeiro da leva. Depois veio Ilídio, Acácio, Ladislau… foram sete homens e cinco mulheres. Entre a filharada do casal, o mais querido de dona Maria era “Mingo”, o Domingos. Domingos Antônio da Guia: “Maria, minha velha Maria [morta em 1945], que Deus a tenha a seu lado, começou a ficar aflita. Queria que êles aprendessem a ler. Que até se formassem em alguma coisa. Mas não houve como. Não houve, realmente, por onde, apesar de sonharmos com um advogado e com um padre na família. Sabe? O padre deveria ser ‘Mingo’ — outro qualquer que fosse advogado […] Sabe? — guardo uma mágoa! De não ter conseguido formar um filho doutor”. Antônio José da Guia concedeu essa entrevista ao repórter Geraldo Romualdo da Silva, em 1951. Ou seja, sete anos após o filho mais famoso ter encerrado a carreira no futebol. Mesmo assim, queria um deles doutor. Mas Domingos da Guia, o “Mingo” de dona Maria, foi doutor! Catedrático da bola. Título que poucos ostentam na história do futebol.
Muitos intelectuais oraram ao “Divino Mestre” Mingo. O uruguaio Eduardo Galeano, doutor das letras, sábio das palavras, disse o seguinte sobre o filho pródigo do casal Antônio e Maria: “A leste a Muralha da China, a oeste Domingos da Guia, nunca existiu zagueiro mais sólido na história do futebol mundial”. O romancista Otavio de Faria dissecava Domingos da Guia como o “Mozart do futebol”. Outro gênio da crônica esportiva, Marcos de Castro, vaticinou: “Domingos foi um capítulo especial do futebol brasileiro”.
O apelido “El Divino Mestre” não foi por menos. Homenagem dos uruguaios, quando Domingos da Guia, aos 20 anos, defendia o Nacional de Montevidéu. Mas a fama começou mesmo durante um amistoso, no dia 22 de junho de 1930, entre a seleção carioca e um combinado formado por húngaros e austríacos, o Hakoah All Stars, dirigido por Bela Gutmann. O estádio de São Januário foi o palco para a vitória de 2 a 0 dos brasileiros, cujos destaques ficaram por conta de Domingos e de seu companheiro de Bangu, o zagueiro e treinador Sá Pinto. Esse mesmo Sá Pinto foi quem lançou Domingos, em 1928, no Bangu. Enquanto o Da Guia insistia em ser escalado como centromédio, Sá Pinto não lhe deu ouvidos e decidiu que o rapaz jogaria ao lado do irmão, Luis Antônio, entrando no lugar de Conceição.
Toda essa reverência para um rapaz com apenas 20 anos de idade… tão novo e já chamado de “Divino Mestre” pelos torcedores uruguaios.
Zizinho, como narra Kleber Mazziero de Souza, visitava, junto com Ademir de Menezes e outros ex-craques do escrete nacional, o colega Obdulio Varela, no Uruguai, o grande capitão da Celeste Olímpica campeã mundial em 1950. Em meio ao bate-papo, Mestre Ziza citou o nome de Domingos da Guia:
— Obdulio, trago um abraço para você lá do Brasil de uma pessoa muito especial.
— De quem, maestro?
— Domingos da Guia.
Varela pôs a mão no queixo e recordou:
— Domingos da Guia, Domingos da Guia, Domingos da Guia, Domingos da Guia… Quando o Nacional contratou o Domingos, nós, jogadores, e toda a imprensa do Uruguai ficamos revoltados. Por que comprar um zagueiro do Brasil, se o maior zagueiro do mundo, o Nasazzi, era uruguaio? Ele estreou, jogou um mês, dois… No terceiro mês, percebemos que até a chegada de Domingos, ninguém aqui sabia o que era um zagueiro. Jamais o mundo verá um zagueiro igual a Domingos da Guia!”.
Como narra Carlos Molinari, o maior pesquisador da história do Bangu, Domingos encerrou a carreira durante o jogo em que o Flamengo fez quatro gols e o Bangu, dois. Uma partida que aconteceu no dia 12 de dezembro de 1948.
Como no Flamengo, no Corinthians, no Vasco, no Boca Juniors e no Nacional, em Bangu ninguém se esqueceu de Domingos. Ele é o maior o ídolo da história do clube. No hino do Bangu, Domingos está lá, citado, homenageado. Poucos no futebol conseguiram tal deferência. Talvez, somente Eurico Lara, cujo nome é mencionado na letra do bonito hino do Grêmio. Até busto de Domingos da Guia está exposto em um calçadão do bairro suburbano em que nasceu. “De todos os jogadores que vi atuar, Domingos da Guia foi o que mais me impressionou. Absoluto. Gigantesco. Estupendo”. Palavras de ninguém menos que Friedenreich, o maior entre todos os gigantes da era do amadorismo no futebol brasileiro, como recordaram os jornalistas Orlando Duarte e Severino Filho.
Pai de Ademir da Guia — outro gênio da bola —, o fantástico Domingos da Guia, ídolo da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938, foi biografado pelo jornalista inglês Aidan Hamilton, que vasculhou de forma impecável a vida do craque. Hamilton identificou uma aproximação de Domingos da Guia e de Leônidas da Silva com o debate sobre racismo no País. Não há, entretanto, provas ou depoimentos francos de engajamento político de ambos em movimentos anti-racistas. Provavelmente foram assediados pela Frente Negra Brasileira [FNB] para aderirem à causa, na fase em que jogaram por clubes paulistas, quando fotos dos dois craques estamparam capas de publicações do movimento negro. Mas o fato de não aderir a alguma daquelas ações públicas de resistência não significa omissão. Domingos sabia de sua importância para a auto-afirmação da população negra, tão segregada nos primórdios da bola:
“O jogador negro tem uma série de virtudes específicas. Em primeiro lugar, é preciso considerar o estímulo profundo de sua condição racial e tem tudo mais, o preconceito de cor. Normalmente, esse preconceito pode ser disfarçado, atenuado. Mas basta que no decorrer de um ‘match’, ele incorra num ‘foul’ qualquer. Logo, o adversário e a torcida passarão a vê-lo, não como um ser humano, igual aos demais, mas como ‘o negro’, ‘o preto’ ou, ainda, ‘o moleque’. É comum ver alguém dizer, em relação ao craque de cor que, eventualmente, irrita a torcida: Aquele moleque!’ Eu fui jogador durante vinte anos e me fartei de escutar coisas semelhantes referentes aos meus companheiros.”
Domingos da Guia presenciou o preconceito racial no futebol ainda rapaz, em Bangu, como descreveu neste depoimento resgatado pelo historiador Rubim Aquino, no livro “Futebol, uma paixão nacional”, e reproduzido por Aldir Blanc e José Reinaldo Marques, na obra “Vasco: A cruz do Bacalhau”: “Ainda garoto, eu tinha medo de jogar futebol porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes… meu irmão mais velho me dizia: malandro é o gato que sempre cai de pé… tu não é bom de baile? eu era bom de baile mesmo e isso me ajudou em campo… gingava muito… sabe que eu me lembrava deles… o tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba.”
Para Domingos, o estímulo ao jogador negro vinha das arquibancadas. Fosse um aplauso o um apupo seguido de ofensas indizíveis: “Ora, essas manifestações se, por um lado machucam, constituem, por outro lado, o incentivo de que falei. Ocorre, então, o seguinte: o jogador procura recuperar-se. Sente, por instinto, que tem meios no futebol de ascender social e humanamente [sic]. Experimenta o prazer, a volúpia de magnetizar a multidão com seu virtuosismo. Reparem: não lhe basta jogar bem. Ele quer mais, muito mais. Precisa burilar, enfeitar a jogada, da na bola o toque ou retoque que entusiasma a torcida. Basta ver Didi, com seu extremo virtuosismo. Se fosse branco não seria um estilista tão perfeito e tão minucioso. Outro: Leônidas, o ‘Diamante Negro’. A meu ver, sua imaginação é caracteristicamente racial”.
Já idoso, Domingos, sem a esposa Erothildes e sem a filha Solange, que morreu em 1990, recordava, saudosista e emocionado, a sua brilhante história. Sua vida inigualável. Especial:
“Minha passagem por este mundo tem sido como o nome que meu pai e minha mãe me deram: uma sucessão de domingos, dia de futebol e de festa. No meu tempo, só se treinava uma ou duas vezes por semana. E só se jogava aos domingos. Era uma festa […] Minha mulher já morreu. Aliás, são essas perdas que não deixam a gente ser feliz por inteiro. Paciência. Tive dois grandes amigos na vida, além de meus filhos. Um deles foi Guilherme da Silveira, patrono do Bangu. O outro, o professor Flávio Costa. Dizem que fui um grande jogador. Não tenho motivos para discordar.”
Uma vez perguntaram ao craque qual seria a escalação do “Flamengo dos sonhos”. Ele respondeu: “O meu Flamengo de todos os tempos seria com Amado ou Jurandir — um ou outro, pois ambos foram ótimos goleiros; Penaforte e Hélcio; Biguá, Bria e Jaime; Valido, Zizinho, Leônidas, Perácio e Moderato.”. Inconformado, o jornalista questionou-o por que não escalar-se no time inesquecível. Domingos foi emblemático ao responder: “Garanto que não foi por modéstia. Penaforte e Hélcio formaram uma dupla muito boa de zagueiros. E se é para escalar os melhores do Flamengo de todos os tempos, estou apenas, em consonância, fazendo justiça a dois ótimos zagueiros que vi jogar […] Penso que consegui enganar bem durante 20 anos. Não fui de TV nem do Maracanã, mas pude dar sempre meu recado direitinho”.
Ele era assim: humilde, genial, surpreendente. Fosse no campo de futebol ou fora dele. Divino.
Neste domingo, 19 de novembro, Domingos faria 106 anos.
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O texto acima integra a biografia do Domingos da Guia, que está no IV volume (a Letra “D”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento previsto para o começo de 2018. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição da Livros de Futebol.com.
Fantástico texto um show de tudo um pouco tão bom que poderia virar sinopse de um curta metragem.