por Mauricio Marzano
Princípios dos anos 60. O Santos, ou melhor, o Brasil tinha uma dupla de área da pesada, Pelé e Coutinho. O Meridional, ou melhor, a cidade de Lafaiete também tinha uma dupla igualmente pesada, Atanásio e Cabo-Frio. Só que para os lafaietenses e torcedores mais radicais, Atanásio e Cabo-Frio deixavam Pelé e Coutinho no chinelo. Eles eram muito, mas muito melhores, diziam em alto e bom som.
Soube da existência deles pelo entusiasmo do Tio Décio em visita a Belo Horizonte. São dois craques totais, dizia-nos ele, e vou levá-los para vê-los jogar amanhã contra o Sete de Setembro lá no Estádio da Colina de Lourdes. E naquele dia, lá fomos nós – tio Décio, o primo Chico Penna e eu – para vermos Atanásio e Cabo-Frio e acabamos vendo o Meridional ser derrotado pelo Sete de Setembro por 2 a 1, com fraquíssimas atuações da dupla infernal, assim apelidada pela Rádio Carijós de Lafaiete em suas transmissões esportivas. O desastre foi tão grande que culminou com Atanásio perdendo o pênalti que daria o empate para o Meridional e cair ajoelhado na grande área a gritar, desesperado, um chorado e sonoro “puta-que-o-pariu” que atravessou toda a Colina de Lourdes e ecoou por metade de Belo Horizonte. Neste jogo, definitivamente, Atanásio e Cabo-Frio não me pareceram os craques de ouro tão elogiados e descantados pelo Tio Décio. Isto tudo para alegria do primo Chico Penna, torcedor fanático do Guarany e inimigo jurado do Meridional.
Nunca mais soube dos dois craques. Mas os nomes eu não podia esquecer. Porque um nome tão estranho como Cabo-Frio? Diziam que ele tinha vindo daquela cidade a beira-mar para Lafaiete. Será? Quem o teria trazido? Se for verdade, deve ter levado umas duas semanas viajando não sei por que rotas para sair das dunas de Cabo Frio e chegar às montanhas de Lafaiete. Coisa de um quase-bandeirante. O nome, ou melhor, o apelido soava um pouco exótico. Mas não mais exótico do que Kafunga, Garrincha, Tostão, entre outros.
Mas minha dificuldade maior era com o Atanásio. Jogador de futebol quando não tem um apelido imponente, tem que ter um nome adequado. Dario podia ser o Peito-de-Aço ou o rei persa. Leônidas podia ser o Diamante-Negro ou o general grego que preferia lutar à sombra. Mas Atanásio não. Atanásio não é e nem nunca foi nome de jogador de futebol, de rei ou de general. É nome de muitos dos primeiros padres da Igreja, de teólogos renomados, de bispos, patriarcas, santos, etc. Hoje com o Google é só digitar Atanásio e ver a quantidade de homens de Deus que vão aparecer, começando por Santo Atanásio de Alexandria, o homem que apresentou à cristandade o Credo de Nicéia. Embora Nelson Rodrigues, sempre o grande Nelson, tenha comparado Garrincha a São Francisco de Assis, quando de sua expulsão no jogo Brasil e Chile de 62, jogador de futebol, no calor da disputa, é tudo, menos um santo. Um Atanásio, qualquer um que fosse ele, no comando do ataque do Meridional ou de qualquer outro time, sempre me pareceu algo meio herético, meio sacrílego, quase blasfemo. Como um Atanásio, qualquer um, pode por a mão na cabeça, após errar uma jogada, como no caso do pênalti perdido que presenciei, e gritar um “puta-que-o-pariu” do fundo de sua alma? Ou após uma botinada de um beque adversário xingar o adversário com toda a ênfase futebolística chamando-o de um alto e clamoroso “filho-da-puta”. Atanásios são, segundo o Google, pessoas preocupadas em entender as nuances bíblicas, discutir a estrutura do Credo, especular sobre as naturezas de Jesus Cristo e as pessoas da Trindade Santa, conceituar heresias, definir ortodoxias, mas jamais ficar gritando palavrões em público, pois são antes de tudo homens santos e preocupados com a transcendência divina. Mas o Atanásio do Meridional, na sua luta dentro das quatro linhas do tapete verde, parecia querer desfazer esta fama dos bem-aventurados Atanásios que o precederam.
Esta dúvida e o incômodo dela derivado, felizmente, acabaram. Leio no Facebook que alguém viu outro dia o Atanásio, já velhinho, muito compenetrado, assistindo a uma missa na Matriz de Nossa Senhora da Conceição. A mesma fonte atestou que ele estava rezando com o fervor superlativo e a fé inquebrantável normalmente associada aos Atanásios, a qualquer Atanásio, e suas orações vinham carregadas de fé, esperança e amor. A mesma fé e a mesma esperança que o então jovem Atanásio tinha sempre na vitória do Meridional. E o mesmo amor que tinha pela bola e pelo esporte ao qual deu muito de seu suor.
Ou seja, depois de passar pelos gramados, de forma meio heterodoxa para um Atanásio, o nosso Atanásio voltou para a sua vocação natural: compreender a presença de Deus entre as gentes. E rogar por nós, pecadores, na presença divina tão familiar aos Atanásios, pedindo a compreensão dos Céus pelos nossos desvios nos gramados, nas arquibancadas e, principalmente, fora delas, nas ruas e na vida. Este sim, é o grande Atanásio da dupla com Cabo-Frio. E não é mais uma dupla infernal. É uma dupla celestial. Amém.
Otávio, Babão e Tito
Mexicano, Kleber e Mauro
Jaime, Ati, Cabo Frio, Carlinhos e Atabasio.
Morei em Lafaiete entre 1955 a 1958. Não um treino do Meridional.