por Zé Roberto Padilha
Era um misto de respeito pelo que você jogava com o medo do que aprontava. Assim foi minha relação com você, em 1975, quando fomos peças de uma Máquina de jogar futebol. Era para ser o meu ano no Fluminense. Depois de percorrer toda a divisão de base nas Laranjeiras, Lula, ponta esquerda titular do clube e da seleção brasileira, tascou com sua categoria uma cola Araldite no meu calção e cadê que despregava daquele banco de reservas? Assinei meu primeiro contrato profissional em 1972, e passei dois anos mais assentados e assistindo partidas do que jogando. Até que ele foi vendido em 1974 para o Internacional.
Com Parreira no comando, joguei toda a Taça Guanabara, parte do estadual e me preparei em uma excursão em janeiro para assumir a camisa 11. Nunca estive tão pronto. Mas quando voltávamos em fevereiro da pré temporada em amistosos pelo sul, paramos em uma banca de jornal em Itatiaia e o Jornal dos Sports trazia na capa a chamada que decretava o fim dos meus sonhos: Horta contratara você, o então maior ponta esquerda ofensivo do país, Rivelino, ponta esquerda da seleção de 70, e de quebraquem dividiu com ele aquela faixa de campo no México, Paulo Cézar Caju.
Me deu vontade de descer a mala e ficar por lá. Mas meu supervisor, Domingos Bosco, disse forte: “Entra neste ônibus menino. Você tem contrato a cumprir!” Entrei no ônibus e saltei para a dura realidade: Fluminense x Bayer de Munich em uma quarta-feira à noite no Maracanã. Jamais assisti uma exibição igual a sua e de todo o meu time. Base da seleção campeã do mundo, bi-campeão europeu com Beckenbauer como capitão e Sepp Mayer no gol, os alemães foram convidados a tomar o maior dos bailes da bola de inspirados bailarinos. Ganhamos de 1×0, gol do Cléber, e todos vocês tiveram uma exibição de gala. Tomei uma ducha e fui para casa pensando: sabe quando que vou entrar naquela ponta?
Entrei no seu lugar na segunda partida da Taça Guanabara. De tantos craques reunidos em campo, nosso time se tornou uma tribo de índios tricolores. Pela extrema capacidade ofensiva, só queriam atacar. Toninho e Marco Antonio apoiavam pelas beiradas, Edinho se apresentava como fator surpresa, Paulo Cézar e Rivelino encostavam nos atacantes e você, Gil e Manfrine iam toda hora para cima da zaga adversária. Só voltavam para cercar quando a aldeia eraatacada. E Silveira e Zé Mário protegiam o pobre do Félix.
Esforçado, recordista do “teste de cooper”, sé perdia em distância percorrida para o Dirceuzinho, fui convocado a entrar no time para defender a oca. E você foi para o banco e se transformou num zumbi que percorria a concentração, os hotéis, os vestiários a aprontar o diabo para cima da gente. Não era jogador para ser reserva de um bom jogador, mas eu, o bom jogador, tão assustado com suas aparições, tornei-me seu comparsa. Melhor ficar ao seu lado do que ser sua vítima, pensava.
E aprontamos juntos. Lembra do dia em que Paulo Cézar Caju encostou seu Puma branco conversível ao lado da portaria da Álvaro Chaves encostado ao Mate? Tinha acabado de chegar de Marselha e queria impressionar as meninas do vôlei. E você, comigo na vigília, decorou o painel com doces-de-leite, cocadas e encharcou um banco de mate gelado e outro de limonada. Quando PC sentou e a calça encharcou, o sangue subiu e os jornais estampavam dia seguinte: Caju pede a diretoria para ser vendido. Motivo: não fora bem recebido pelo elenco.
Quando lancei meu primeiro livro, “Futebol: a dor de uma paixão”, e contei cinco das nossas histórias, claro, precisava vender meus livros de não ficção, mas a ficção me tornou narrador e você o personagem principal. Quando nos encontramos em uma partida do máster nas Laranjeiras você foi tirar satisfações comigo. Com que direitos, falava sério, publicava nossas histórias sem consentimento? Respondi, em defesa, que estava desempregado, vivia das vendas do meu livro e que ele jogava na seleção de máster do Luciano do Valle. Precisava de histórias incríveis como a nossa para pagar o aluguel, de preferência com um grande jogador no papel principal a atrair bilheteria. E você jamais me perdoou.
Queria lhe dizer, amigo, já que não tive como me aproximar mais de você após 41 anos, do orgulho que ainda sinto quando um torcedor tricolor amigo, querido da gente, me apresenta a alguém não como quem teve a honra dejogar no Flamengo ao lado Zico, mas de ter sido aquele pontinha tricolor que um dia barrou o Mário Sérgio. No segundo turno você resolveu voltar a ser titular. Se cuidou, passou a chegar cedo às Laranjeiras e aí era covardia. Retornei ao banco. E quando o Presidente Horta foi lhe abraçar após a partida em que acabou com o lateral direito do Botafogo, você o puxou para dentro da ducha. Nova punição. E eu voltei a ser titular na partida seguinte.
Tudo passa tão rápido na vida da gente, entre vestiários, competições, vôos e tantos companheiros de camisas diferentes, que quando você encerra a carreira e retorna a sua cidade de origem, como eu e muitos jogadores revelados no interior, trazemos junto na bagagem nossas lembranças. Se soubermos lidar com elas, reunidas em recortes nas canelas e manchetes nas gavetas, construir uma nova profissão e não ficarmos desamparados a ponto de viver a contá-las pelos bares e sinucas, tudo bem. Mas ontem, ao vê-lo partir tão cedo, de uma maneira tão dura, tais lembranças vieram à tona junto as lágrimas. Porque você, Mário Sérgio Pontes de Paiva, foi mais que um personagem da minha vida e dos meus livros. Entrará para a História como um artista da bola, um gênio do futebol que jamais será esquecido.
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