por André Felipe de Lima
Estava cansado. E tinha motivos de sobra para chatear-se com os cartolas do Nacional. Afinal, chegara ao tradicional e campeoníssimo clube de Montevidéu com apenas 15 anos. Cresceu e, com a tradicional camisa branca, ajudou o Nacional na conquista de quatro campeonatos uruguaios [1966, 69, 70 e 71] e de uma Taça Libertadores da América [1971] e, de quebra, era titular absoluto da seleção uruguaia. Nada mal para quem era ídolo da torcida e um dos melhores zagueiros de seu tempo e o melhor do mundo em 1970. Mas como tolerar quatro meses sem receber um salário de apenas 1100 cruzeiros, ninharia para sua época? Prêmios por vitória, os chamados “bichos”? Ah, aquela dívida era monumental, algo em torno de 120 mil cruzeiros. Ancheta, definitivamente, cansou. Pediu as contas e decidiu que no Nacional, que devia cerca de 5 milhões de cruzeiros na praça, não ficaria mais.
Se for para ser ídolo, seria em outro lugar, ganhando o que realmente merecia um craque de sua estirpe. Foi assim que, em outubro de 1971, o Grêmio herdou do Nacional aquele que faria de sua trajetória nos campos brasileiros um dos melhores jogadores da história gremista.
Se o Grêmio teve dificuldade para comprar o passe de Ancheta? Nenhuma.
Quem aparecesse com dinheiro na sede do Nacional levava qualquer um dos craques do time. Que tal um Cubillas? Ou um Artime? Quer o Montero Castillo e o “cobra” Espárrago? A “feira” uruguaia era farta. Mas os cartolas gremistas só tinham olhos para Ancheta. E botaram preço.
Luís Silveira Martins e Luiz Carvalho [grande ídolo do passado Tricolor] ofereceram 250 mil cruzeiros, o passe de Chamaco [comprado ao River Plate, em março de 71, por 100 mil] e a renda de um jogo em Porto Alegre que garantisse, no mínimo, 200 mil. A soma de 550 mil foi muito em conta. Ancheta, um craque, à preço de banana. Melhor, impossível. Negócio da China para o Grêmio e um grande alívio para Ancheta. Nem mesmo a disputa do Mundial de clubes, no mês seguinte, contra o grego Panathinaikos, comovera-o. Muito menos a chiadeira da imprensa uruguaia. O El País estampou a manchete “Ancheta, o melhor jogador do futebol uruguaio vai embora”. Já o El Día intimou a Associação Uruguaia de Futebol pra que evitasse que mais ídolos locais debandassem. “Olha, eu tinha direito a 20% sobre o preço do passe. Mas abri mão para facilitar o negócio. Também aceitei receber apenas a metade do que o Nacional me devia em prêmios. Era o único jeito de sair de lá.”
O Nacional acabou campeão do mundo. E Ancheta? Estava muito feliz com a nova casa, em Porto Alegre.
O Inter, quando soube que o Grêmio comprara o passe de Ancheta, então o melhor zagueiro do planeta, tratou de acelerar a vinda do antagonista do uruguaio: o defensor Elias Figueroa, chileno e um dos ídolos do Peñarol, arqui-rival do Nacional.
NA VAGA DE UM ÍDOLO
Atilio Genaro Ancheta Weiguel nasceu no dia 19 de julho de 1948, na cidade de Florida, no Uruguai. Sua primeira experiência futebolística foi aos sete anos de idade, na sua cidade natal, no Clube San Lorenzo, e seu ídolo, desde pequeno, era o zagueiro Emílio Alvarez, do Nacional.
Quando completou quinze anos, foi convidado por um amigo para fazer um teste no Nacional, onde ingressou nas categorias de base como centromédio. Gostava tanto da posição que recusou várias tentativas de o escalarem na zaga. Só se convenceu de que deveria recuar ainda mais quando percebeu que Montero Castillo, grande ídolo do Nacional e titular na zaga da seleção uruguaia, estava em fim de carreira.
Em 1966, já se destacava como um zagueiro seguro e de futebol refinado, incapaz de chutões ou entradas violentas nos atacantes. Após se destacar pela seleção uruguaia na Copa do Mundo de 1970, no México, como um dos melhores zagueiros da competição, ao lado do italiano Cera e do alemão Franz Beckenbauer, Ancheta seguiu para o Grêmio, em 1971.
Fez boas temporadas, mas nada de títulos para o Tricolor, que caía sempre diante do rival, o Internacional de Falcão e Figueroa, ganhador de tudo o que era troféu que via pela frente. Se era de prata e brilhava, o Inter ia lá e papava. Para o Grêmio nada sobrava. Mas para Ancheta, o reconhecimento viria em 1973 — e em dourado —, com a “Bola de Ouro”, da revista Placar , de melhor jogador do Brasil. Nem mesmo os dolorosos cálculos renais impediam-no de jogar. Curvava-se de tanta dor, mas não dava moleza para atacante algum.
No ano seguinte, o melhor zagueiro do planeta queria disputar novamente a Copa do Mundo, mas o Grêmio não queira liberá-lo para a seleção do Uruguai. “Então os dirigentes uruguaios ficaram irritados comigo e disseram que eu não era patriota. Quando fui a Montevidéu para explicar, ninguém quis me ouvir, não me deram microfones nem espaço nos jornais”. Somente três anos depois do episódio, Ancheta comentou o imbróglio entre os cartolas do Uruguai e do Grêmio.
Em 1975, quando o rival conquistou o primeiro título nacional de sua história, o Grêmio quase entrou em colapso e Ancheta com ele. O jogador vivia às voltas com uma série de lesões. Ficou até 90 dias fora de ação e por pouco não venderam seu passe ao Fluminense. A imprensa especulava e a torcida também. Diziam que Ancheta pedia para não jogar e que o seu caso estava mais para um psiquiatra que para um técnico de futebol. Havia exagero? Evidentemente que sim, mas Ancheta realmente trocou uma ideia com um psiquiatra. O próprio craque confirmou, na ocasião, a história, dizendo-se amigo do médico, mas sem sequer saber o nome do camarada. Há explicação para — se é mesmo que existe — a teoria do ato falho? Freud talvez explique. Ancheta tratou, porém, de encontrar solução caseira para suas contusões, que o perturbavam desde os tempos de Nacional, como a calcificação óssea na coxa direita que o obrigou a uma cirurgia.
A quem garantisse que o tal “problema psicológico” de Ancheta começou quando ele perdeu a bola para o ponta Valdomiro, que acabou marcando o gol do título estadual do Inter, em 1974. Ou seja, Seria o Gre-Nal o maior tabu na carreira de Ancheta?
Sua fibra em campo nunca foi questionada, mas o jogador começou, nos primeiros meses de 1976, a enfrentar um novo problema físico que muito o incomodava: uma insuportável dor nos quadris. Como era magro, os constantes choques com jogadores adversários provocavam dores na região. Por conta disso, ficava fora do time por alguns jogos seguidos. Para contornar a situação, chegou a usar uma grossa faixa de espuma na cintura durante as partidas e até treinos.
Parece que a solução de Ancheta dera certo. Para ele e todo o time do Grêmio, que, no dia 28 de julho, acabou campeão do primeiro turno do Campeonato Gaúcho para cima do Inter. Seria aquela vitória o começo do fim do jejum de títulos estaduais?
Naquela partida, Dario, o “Dadá Maravilha”, centroavante colorado, elogiou Ancheta. O zagueiro retribuiu a gentileza: “Gostei do Dario. É um cara sensacional”. Mas a recente amizade — se realmente podemos afirmar que há alguma entre um zagueiro e um centroavante — acabaria prematuramente em outro Gre-Nal, do qual o Inter saiu vencedor e, de quebra, campeão do segundo turno. Talvez a vitória não compensasse o estado em que Dario se encontrava quando deixou, mancando, o campo. O saldo foi um olho inchado e a orelha esquerda inchada. O clássico, que de clássico não teve nada, foi uma verdadeira guerra. Hermínio e Falcão, do Inter, e Eurico e Alcino, do Grêmio, foram expulsos, onze receberam cartão amarelo e Dario prometeu vingar-se de Ancheta, que, segundo o centroavante, chutou-lhe, com vontade, a bunda. “Já se viu disso? Senti a dor mais terrível da minha vida. Cansei de apanhar e bati nele. E tem mais: ele não perde por esperar. Depois dessa, posso afirmar que nunca senti um título tão perto.”
Dario cumpriu a ameaça e o Inter levantava novamente o caneco de campeão gaúcho. Ancheta, eu detestava que o comparassem ao chileno Figueroa, zagueiro e ídolo colorado, teve de engolir seco. Um dia haveria de ir à forra, mas como campeão. Quando Figueroa chegou ao Inter, ingressou em um time que já era campeão e que conquistaria o Brasil. Definitivamente, o melhor time nacional dos anos de 1970 foi o Inter de Falcão, Figueroa e companhia. Já Ancheta veio para um Grêmio sempre atrás do rival. Não foi fácil para ele aturar as comparações com o craque do Inter, que existiam desde o duelo entre ambos, quando defendiam Nacional e Peñarol.
Mesmo sem conquistar títulos com o Grêmio, o clube proporcionou a paz de espírito e a grana necessária para que Ancheta fizesse um bom pé de meia. Na mesma época das seguidas contusões, acabara de comprar uma mansão e três casas no Uruguai e trocara um apartamento em Camboriú, no litoral catarinense, por um posto de gasolina.
Custou a ser campeão pelo Grêmio, o que aconteceu somente em 1977, ao erguer o troféu do Campeonato Gaúcho. Apesar de ser um dos homens de confiança do treinador Telê Santana, Ancheta não disputou o jogo que garantiu o título ao Grêmio. Até hoje especula-se que o zagueiro foi sacado do time na final, dando lugar a Cassiá, por tremer em Gre-Nais. Maldade. Ancheta nunca tremeu contra o Inter. Dario que o diga.
Após o título de 77, o zagueiro, que se naturalizou brasileiro em 1976, conquistou os campeonatos estaduais de 1979 e 80, este último na reserva do jovem Newmar.
Após nove anos no Olímpico, Ancheta deixou o Grêmio sob uma indisfarçável amargura. “Não pelo Grêmio, que tem um ambiente sensacional, mas pelo que perdi financeiramente. Hoje sei que poderia ter ganho 50 por cento mais se tivesse saído antes”. Ancheta deixou o Grêmio para defender o Milionários, da Colômbia, em 1980. No ano seguinte, voltou ao clube que o projetou: o Nacional.
Não foi uma estada amena. O clima com o técnico Basile azedou e Ancheta mostrou-se disposto a sair novamente do Nacional. Dono do próprio passe, Ancheta recebeu proposta do São Paulo, em agosto de 1982, com aval do treinador do Tricolor paulista, Poy.
A situação no Nacional foi contornada e Ancheta permaneceu no clube de seu coração para lá encerrar, em dezembro de 1982, uma extraordinária carreira de craque e de ídolo do futebol uruguaio e, por que não, brasileiro. Retornou a Porto Alegre em 1983. Tornou-se empresário até 1987, quando resolveu ser auxiliar técnico, no ano seguinte, do Clube Avaí de Florianópolis, onde se consagrou campeão estadual. Em 1996, começaram as reverências ao legado esportivo de Ancheta: colocou os pés na calçada da fama do Grêmio e recebeu um troféu de “Gaúcho Honorário”. No ano seguinte, outro troféu de reconhecimento por ter sido o melhor zagueiro central da seleção uruguaia nos últimos 25 anos. Em 1998, o Nacional o considerou um dos melhores atletas de sua história. Com a camisa da celeste olímpica, Ancheta entrou em campo 20 vezes.
Aposentado, o ex-zagueiro “descobriu-se” cantor de boleros. E o faz até hoje em clubes e churrascarias. Já gravou, inclusive, alguns CD’s, mas não deixou o futebol de lado. Administrou uma escolinha no clube Força e Luz e arrumou um “bico” na TV Pampa, canal 4, de Porto Alegre, como comentarista esportivo.
Ancheta tornou-se uma lenda do futebol gremista. Quem o viu em campo, garante: uma zaga de sonhos seria Ancheta e Aírton Pavilhão. Realmente seria extraordinário. Sonhar, afinal, não custa nada.
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Excelente reportagem! Parabéns! Saberiam me dizer quem é o autor da foto (ou a fonte de onde tiraram o registro) da primeira fotografia do texto? Agradeço se puderem ajudar, é para uma pesquisa em paralelo sobre a história das camisas do Grêmio.