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AFINAL, O QUE É AMOR À CAMISA?

19 / julho / 2020

por Wilker Bento


Quantas vezes já ouvimos que não se fazem mais jogadores como antigamente, ou que, no passado, se jogava por amor e hoje se joga por dinheiro? Será verdade que os atletas, antes românticos, se tornaram mercenários?

Para desvendar esse mistério, vamos começar analisando a história de dois casais fictícios: João e Maria estão juntos há 75 anos, sempre viveram no interior e se casaram atráves de um arranjo familiar. Ao longo do tempo, João se tornou frio e agressivo com Maria. Ela sempre trabalhou como dona de casa e, sem ter seu próprio dinheiro, permaneceu com ele apesar de tudo. Já Enzo e Valentina estão juntos há um ano e meio, conversam por horas na internet e sempre trocam presentes nas datas comemorativas. Depois de um tempo, eles se distanciaram, a família de Valentina se mudou para Portugal e Enzo ganhou uma bolsa numa faculdade norte-americana. Terminaram o namoro, mas são amigos até hoje. 

Quem amou mais, João ou Enzo? Qual o peso do tempo numa relação, seja pessoal ou profissional?

No Brasil, jogadores de futebol atuam oficialmente por dinheiro desde os anos 1930. Mesmo antes do profissionalismo, transferências eram comuns. Maior jogador brasileiro da era amadora, Arthur Friedenreich passou pelo Germânia, Ypiranga e Flamengo, entre outros. Não havia a ideia do jogador leal, que precisava atuar pelo mesmo clube a vida inteira.

Mesmo com o profissionalismo, os jogadores de futebol não passaram a ter as condições de trabalho que têm hoje. A lei do passe mantinha os atletas presos aos clubes detentores de seus direitos. O primeiro a romper com essa lógica foi Afonsinho, que, em plena ditadura, entrou na justiça para ter direito ao seu passe. Foi o único jogador a obtê-lo até a Lei Pelé, de 1998. Três anos antes, a Lei Bosman alterou os rumos do futebol, permitindo que jogadores com cidadania europeia trabalhassem sem restrições pelo continente.

Assim, o fluxo de transferências aumentou porque o futebol se consolidou como um negócio, e não por degradação no caráter dos atletas. A intensa circulação financeira tornou-se evidente: em 1893, Willie Groves custou 100 libras ao Aston Villa, transferência mais cara da época; em 2017, Neymar foi vendido ao PSG por 200 milhões de libras. Cada um é fruto do seu tempo.


Mesmo se adotarmos a longevidade num clube como critério para definir “amor à camisa”, observa-se que não há muita diferença entre os tempos anteriores à Lei Pelé e os dias atuais. No século XX, grandes jogadores fizeram toda sua carreira no mesmo time, como Nilton Santos, Leandro, Baresi e Bergomi. São poucos, assim como no século XXI, onde nomes como Rogério Ceni, Marcos, Puyol, e Maldini foram exceções. Não parece haver uma diferença quantitativa muito grande.

Talvez o incômodo maior para os torcedores aconteça quando um jogador passa a vestir a camisa de um rival. No passado, tivemos exemplos de atletas que só atuaram em uma equipe em seus países de origem, como Pelé, Zico e Valdano. Mas isso também ocorreu em tempos mais recentes, com Raul, Henry e Kaká.

É natural buscar novos ares e mudanças às vezes são saudáveis. Totti, por exemplo, viveu toda sua carreira na Roma e é o maior símbolo recente de fidelidade a um clube, mas também passou por momentos de desgaste e em alguns episódios, sair parecia uma melhor opção. Messi, que está no Barcelona desde criança, por vezes é contestado por não buscar novos desafios em outros times, como fez Cristiano Ronaldo.

Amor à camisa é honrar a torcida e a equipe, mostrar raça e dedicação, mesmo que o contrato não dure para sempre. Como faz Loco Abreu, que mesmo já tendo passado por 29 clubes, costuma deixar boas lembranças. Ser um andarilho da bola não apaga o que ele fez pelo Botafogo, tendo se tornando um ídolo alvinegro. O mesmo vale para Túlio, outro peregrino muito querido pela torcida do Glorioso.

O torcedor que chama o ex-jogador do seu time de “judas” não pensaria duas vezes em trocar de emprego por um salário maior. Ou aceitamos a realidade como ela é ou fantasiamos atletas puristas de uma época que nunca existiu.

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