por Marcos Vinicius Cabral
Ao consagrar-se no Flamengo, em 1981, Adílio não venceu apenas adversários dentro de um campo de futebol. Venceu a pobreza, a falta do pai que morreu quando era criança, o preconceito, e a questão racial que impera até hoje na sociedade. Venceu na vida.
Saído de um conjunto habitacional no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, o homem Adílio de Oliveira Gonçalves realizou os sonhos que um dia o Neguinho da Cruzada sequer imaginaria conseguir.
Humilde, com aquele sorriso puro e mágico que só quem o conheceu pôde perceber, o 8 do Flamengo teve as cicatrizes de uma vida difícil coberta pelos esparadrapos do destino. Cada conquista que teve serviu para sarar as feridas. O tempo curou cada uma delas. Boa parte por meio do futebol.
Mas falar de Adílio e não citar os amigos que construiu ao longo dos 68 anos em que esteve aqui entre nós, é obrigá-lo a entrar em campo e pedir para marcar o adversário. Foge das características do jogador acima da média que foi. Coisa que Adílio teve de sobra, já que desde os seis anos ele já fazia travessuras com os rápidos pés.
A responsabilidade tática – exigida pelos técnicos com quem trabalhou – fazia com que Adílio se comportasse confortavelmente naquele meio-campo com Andrade e Zico como se estivesse em um lugar aconchegante. Era como se estivesse em casa cuidando de Alexandre, Ivan e Sebastião, três irmãos mais novos, para que dona Alaíde, a mãe, pudesse trabalhar fora e trazer o sustento para o lar.
O duro golpe veio na metade dos anos de 1970, quando dona Alaíde, figura dócil e sorriso marcante como o do filho, foi embora deste mundo e Adílio, compelido pelas circunstâncias da vida, vestiu – ao mesmo tempo em que já era notado com a camisa do Flamengo nos ‘Maracanãs’ Brasil afora – o uniforme do ‘Responsabilidade Vida Clube’. Dito e feito, colocou as chuteiras embaixo dos braços e foi-se embora fazer história como ser humano ímpar.
Coube a Deus, não lhe dar uma camisa ímpar como a 11, do endiabrado Júlio César Uri Geller – talvez o melhor amigo no meio do futebol – ou a 9, como a do decisivo Nunes. Talvez Deus poderia dar-lhe a 7, do bom de bola Tita, ou até mesmo a 5, de alguém chamado Leovegildo que recebeu a alcunha de Maestro por reger a orquestra rubro-negra de garotos. A 3, do sereno Marinho, e a 1, do seguro Raul, pudera, ele soube dosar serenidade e segurança em cada vez que teve o nome gritado pela Nação.
Quem se acha, já se perdeu. E marra, soberba, e altivez, o nosso eterno craque deu de bico para longe. Era importante para Adílio manter no inconsciente Carlinhos (1937-2015), que dominava a bola como um som afinado de um violino, e a batida de trivela de Nelsinho, ídolos do Flamengo na década de 1960 e dele.
Mas Adílio não era santo. Dos pulos que dava nos imponentes muros da Gávea para assistir os treinos até os desdobramentos entre os afazeres domésticos e os jogos no Sete de Setembro e no Royal, times de praia do Leblon, o Brown (referência ao ídolo James Brown), Adílio incorporou. À frente dos marcadores, gingou e balançou como poucos no futebol. Ganhou massa muscular, força e explosão. Flutuou sem sair do chão.
A alma, já rubro-negra, recebeu como dom divino ao dar o primeiro choro em vida. Canonizado, Adílio, um dos maiores camisas 8 do futebol brasileiro de todos os tempos, carregava consigo a esperança no olhar. E com a divina trindade enraizada às veias dos braços negros corria um sangue. Ora vermelho, ora preto. Tanto faz. O que importa é que era rubro-negro!
Na Seleção Brasileira teve poucas chances, é verdade. Preterido por Telê Santana em 1982, ganhou títulos, foi reverenciado, endeusado e cravou o nome na história do Flamengo rodando o Brasil e o mundo.
Em novembro de 1988, quis evidenciar o ditado popular “o bom filho à casa torna”, mas o então técnico Telê Santana, o mesmo que o preteriu para a Copa de 1982, na Espanha, vetou a contratação. Esteve no Alto da Glória para defender o Coritiba, mas a experiência na cidade modelo do país não foi das melhores. Sua saída do Flamengo, em 1987, foi um mistério.
Se tornou nômade no mundo da bola. Terminada a epopeia nos gramados, foi para o banco orientar os garotos que queriam ser o ‘novo’ Adílio. Pobres, garotos! Adílio tem o selo de autenticidade, é único e não há similares por aí.
Adílio nos deixou na segunda-feira, 5 de agosto, para desgosto dos que amam o futebol. Fechou os olhos para a eternidade. Não vai mais telefonar para o Andrade, enviar “bom dia” para o Leandro, perguntar pelo Lico ou brincar com o filho do Uri Geller. Não, nunca mais!
O que Adílio quer é que seu nome jamais seja esquecido. E isso, já estamos fazendo. Viva, Adílio!
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