por André Felipe de Lima
O jornalista Paulo Varzea — antes mesmo de Tomás Mazzoni, o “Olimpicus” — identificara (ou especulara?) que o futebol no Brasil surgira antes de 1895, quando rolou oficialmente, e sob regras primevas, a primeira partida de futebol organizada por Charles Miller, o aniversariante do dia. Assim escreveu Varzea no jornal Gazeta Esportiva, em maio de 1942: “O futebol teria sido exibido na Argentina e no Brasil por volta de 1864, por marinheiros dos barcos mercantes e de guerra estrangeiros, particularmente ingleses. Na Argentina, porém, sua verdadeira prática pelos nacionais data de 1865, entre os sócios do B. Aires Cricket Club, sendo que no Uruguai apareceu por volta de 1880, entre os marinheiros, ali por Punta Carreta. Mas só passou a ser divulgado entre os orientais e argentinos depois que se divulgou nas escolas, por iniciativa de Watson Hutton, na Argentina, e Henry Castle, no Uruguai. No Brasil foi trazido também pelos marujos britânicos, que efetuaram as suas primeiras práticas nos capinzais desertos do litoral norte e sul do país, nos tempos coloniais, do fim do Império e da guerra do Paraguai”.
Varzea — como o cita Mazzoni no célebre “História do futebol no Brasil”, de 1950 — afirmara, com base em jornais da época, que em 1874 a praia da Glória, no Rio, abrigara uma empolgante pelada de marujos ingleses. Houve outra registrada em 1878, quando os marinheiros do navio Criméia se esbaldaram num capinzal entre as ruas Paissandu e a antiga Roso em frente ao antigo palácio em que morava a Princesa Isabel e hoje é conhecido como Palácio da Guanabara, “casa” dos governadores do estado. Pena os marinheiros terem levado o futebol de volta com eles no navio. Mas a alma do novo esporte bretão permanecera no local. Tanto é verdade que ali, naquele território, divisa entre os bairros do Flamengo e das Laranjeiras, brotaria futebol pela primeira vez em solo carioca poucos anos após a pelada dos marujos ingleses.
Entre 1875 e 76, segundo Varzea e Mazzoni, um tal “Mr. John” organizara uma pelada no mesmo local em que seria realizada a “pelada” de 1878. O britânico mobilizou vários funcionários (ingleses e brasileiros) das companhias de navegação inglesas, de bancos, docas, cabos submarinos e da The Leopoldina Railway Company, a ferropvia carioca.
Salomão Scliar e Marco Aurélio de Oliveira Ribeiro Cattani, dois pesquisadores do futebol brasileiro, lançaram, em 1968, e em quatro volumes, a obra a “História Ilustrada do Futebol Brasileiro”. Nela, eles narram que marujos ingleses e holandeses promoveram peladas com a população nativa. Isso em 1878. Não se sabe ao certo em que parte do litoral nordestino as tais peladas aconteceram.
Em São Paulo teria acontecido um pouco antes. Testemunhas oculares da história contaram ao Varzea que as primeiras peladas em território paulista ocorreram entre 1872 e 73 no Colégio S. Luiz, de Itu. Não teria sido propriamente, como descrevera Varzea, uma pelada como a dos marujos no Rio. Na verdade, um padre professor vivia chutando um balão contra o muro, igualmente ao que os jovens ingleses faziam no tradicional Eton College, na Inglaterra.
Varzea era um farejador de informações. Ótimo repórter. Um dos melhores cronistas eportivos de seu tempo. O cara descobriu também, e Mazzoni endossou o fato em sua obra, que houve outro indício de que o futebol já era praticado por aqui antes de 1894. O episódio foi registrado em 1882, em Jundiaí, quando um camarada conhecido como “Mr. Hugh” promoveu uma pelada entre brasileiros e ingleses, todos operários da antiga The São Paulo Railway Company, a ferrovia paulista.
Eis, portanto, fatos (ou seriam lendas peladeiras?) que marcaram a chegada do futebol Brasil. É possível que todas essas peladas, inclusive ocorridas em estados do Norte, do Nordeste e do Sul, tenham realmente acontecido. Mas a bola rolou oficialmente, com base nas regras trazidas da Inglaterra por Miller, em 1895. Mas, parafraseando o “profeta” Nelson Rodrigues, “estava escrito há mil anos” que o futebol brasileiro nasceria no cabalístico 1895. E isso graças ao Miller.
Segundo filho do escocês John Miller, engenheiro transferido para o Brasil para a São Paulo Railway Company, e da brasileira descendente de ingleses Carlota Alexandra Fox, e sócio do São Paulo Athletic Club [SPAC]), Charles Miller foi estudar, em 1884, na Bannister Court School, em Southampton, na Inglaterra. Esse menino tinha nove anos e chamava-se Charles William Miller. O velho John Miller enviou para terra da rainha o garoto, o irmão mais velho dele, John, e o primo de ambos, William Fox Rule. Os três desembarcaram em Southampton no dia 29 de julho.
Charles chegou a defender o selecionado de seu condado, o Hampshire. Disputou jogos contra o Corinthians F.C., que mais tarde viria ao Brasil e inspiraria jovens para a criação da versão paulistana do time inglês, e defendeu o St.Mary’s, que mudaria de nome, tempos depois, para Southampton F.C.. Aos 17 anos, destacava-se na escola, mas com a bola e com o críquete. Chegou a enfrentar o time do Exército da Divisão de Aldershot. Perdeu o jogo [3 a 1], mas foi o autor do gol do St. Mary’s.
Na temporada de 1893-94, Charles Miller disputou 34 jogos pela Banister School, marcando 51 gols, com a média de 1,59. Na edição de Natal da revista da escola em que estudava, foi publicado o seguinte comentário: “Charles W. Miller é o nosso melhor atacante. Seu drible é como uma fagulha e seu chute, devastador. Poderia ser mais esforçado, mas, mesmo assim, trata-se de um goleador incorrigível”. Sempre atuando como left-winger, ou simplesmente ponta-esquerda.
Pelo St. Mary’s, Charles disputou 13 partidas e fez três gols, pelo Condado de Hampshire marcou o mesmo número de gols só que em seis partidas.
Retornou ao Brasil em 18 de fevereiro de 1894, com um par de bolas de capão e um livro de regras do association football, que conheceu por aquelas bandas frias, no colégio em que estudava.
A rapaziada, a maioria inglesa, da The Gaz Co. (fornecedora de gás da capital), da São Paulo Railway Company [SPR] e do London Bank, organizaram uma peleja em 14 de abril de 1895 na Várzea do Gasômetro, na Chácara Dulley, situada entre os bairros da Luz e do Bom Retiro. O jogo colocou frente a frente o time da SPR e o da The Gaz Co. A primeira partida (em tese) oficial disputada no Brasil terminou 4 a 2 para a SPR, com dois gols de Charles Miller. O SPAC foi depois o primeiro tricampeão da Liga Paulista de Futebol, fundada em 19 de dezembro de 1901, vencendo os certames de 1902, 03 e 04. Charles Miller foi artilheiro em 1902, com 10 gols, e em 1904, com nove.
O alemão Hans Nobiling, que tinha uma enorme paixão pelo futebol, foi um grande incentivador do esporte bretão, ao lado de Charles Miller. Nobiling chegou de Hamburgo, no dia 13 de fevereiro de 1896. Trouxe na maleta uma bola e os estatutos da Deutschland S. V..
Em 1898, os estudantes do Mackenzie College fundaram a Associação Atlética Mackenzie College e, no ano seguinte, a colônia alemã, com Nobiling a frente, fundou o Germânia [atual E.C.Pinheiros].
Charles Miller e Oscar Cox, que havia voltado da Suíça para o Rio de Janeiro, organizaram os primeiros jogos entre Rio e São Paulo. Em 1º de agosto de 1901, no campo do Rio Cricket, brasileiros enfrentaram membros da colônia inglesa. Apenas 15 pessoas presenciaram a partida.
Cox trocava cartas com Renê Vanorden, um dos fundadores do Sport Club Internacional de São Paulo, Charles Miller e Antonio Casemiro da Costa, este fundador e primeiro presidente da Liga Paulista de Foot-Ball, no dia 14 de dezembro de 1901, na Rua São Bento, nº 3, sala 1, no centro paulistano. Cox queria agendar o primeiro jogo “pra valer” entre cariocas e paulistas, sem a escalação de ingleses. E o primeiro confronto aconteceu em 19 de outubro de 1901, no campo do São Paulo Athletic Club.
Engana-se, contudo, quem pensa que os primeiros jogadores de futebol eram tratados com regalias. Cox estava sem dinheiro para levar a moçada do Rio para o “match” em São Paulo. Pediu à companhia do trem cortesia para as passagens de todos ou, no mínimo, um desconto. Recebeu um sonoro não para os dois pedidos e teve de ouvir do representante da Estrada de Ferro que o trem não era local para passeio de “malandros” e “desocupados”.
Mas Cox conseguiu — não se sabe como — embarcar os jovens pioneiros da bola.
O primeiro e o segundo jogo terminaram empatados, em 1 a 1 e 2 a 2, respectivamente. Logo após o “match” derradeiro, os paulistas ofereceram um banquete na Rotisserie Sport. Oscar Cox e Charles Miller falaram a todos os jogadores sobre a importância da alvorada do futebol no Brasil.
A imprensa acompanhou a jornada dos altivos jovens futebolistas.
O Jornal do Brasil, de 21 de outubro, anunciava que “O match de foot-ball ficou empatado novamente, sem que nenhum dos lados fizesse ponto algum” e o jornal O Comercio, do dia 17, que “No sábado à tarde, 19, e no domingo de manhã, se realizarão dois matchs nesta cidade, entre rapazes dos clubes daqui e os do Rio, que para esse fim vieram a esta capital especialmente […] Esta é a primeira vez no Brasil que se joga um match deste interessante sport entre dois Estados, e se acrescentarmos que são brasileiros os rapazes que, na maior parte, vem do Rio disputar o campeonato Brasil-1901, há um justo motivo de nos regozijarmos, porque finalmente a nossa gente começa a se dedicar com afinco a estes utilíssimos exercícios, cujos benefícios para nossa futura geração, se hão de patentear na sua robusta physica, condição essencial em todos os ramos do labor humano. Aos nossos leitores, que aconselhamos não perderem um minuto deste interessante encontro, prometemos todos os pormenores que se possa guiar e conduzir nessa curiosa prova de foot Ball.”
Miller amava o futebol, mas era, antes de tudo, um exemplo de desportista. Na Inglaterra, jogou críquete, rúgbi, tênis e futebol. Foi fundador da Associação Paulista de Tênis. Quando abandonou a carreira futebolística, tornou-se árbitro e dirigente esportivo.
O inventor da “charles” ou “chaleira”, jogada em que o jogador passa bola por trás do pé, tocando-a de calcanhar, nasceu no dia 24 de novembro de 1874, no bairro paulistano do Brás, na rua Monsenhor Andrade. Nos dias que antecederam o jogo entre cariocas e paulistanos, em 1901, procurou insistentemente os jornais de São Paulo para que anunciassem o marco esportivo que aquela partida representaria para o País. Ouviu o seguinte da maioria dos redatores: “Não nos interessa semelhante assunto!”. À Gazeta Esportiva de 1944, ele comentou: “E hoje em dia como é diferente…”
Se há um “pai” da bola no futebol brasileiro, este é Charles Miller.
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