por André Felipe de Lima
Ademir de Menezes encantava. Que o diga o recifense Antonio Maria, cronista, compositor e locutor esportivo da rádio Tupi, juntamente com Ary Barroso [rubro-negro dos mais parciais em irradiações esportivas]. Quando Maria veio para o Rio de Janeiro, no final dos anos de 1940, transformou-se em vascaíno, ou melhor, em torcedor do “Ademir Menezes Futebol Clube”, como relata Joaquim Ferreira dos Santos em “Um homem chamado Maria”, excelente biografia do genial jornalista, que torcia pelo “Queixada” desde os tempos do Sport. Maria, após o gol do uruguaio Ghiggia na final da Copa de 50, perdeu o gosto pelo futebol, mas continuou fã de Ademir, da mesma forma que seu colega de transmissões de jogos na Tupi, Ary Barroso, era apaixonado pelo Flamengo.
Mas o que Ademir contava a respeito de jogos contra o arquirrival, o Flamengo? “Neste jogo, um jogador pode se consagrar ou ser condenado ao ostracismo. Tudo depende do que acontecer em campo”. O “Queixada” nunca escondeu o prazer que sentia quando atuava contra o Flamengo. A “vítima” era o goleiro paraguaio Garcia. “Ele era um ótimo goleiro, apenas eu dava sorte quando jogava contra ele”, dizia um ponderado, quase diplomático, Ademir Marques de Menezes, que teve dois marcadores implacáveis, porém leais em jogos contra o Flamengo: Modesto Bria [de 1945 a 49] e Jadir [de 1949 e 54]. Deles, Ademir comentava: “Todos dois sabiam marcar muito bem. Jogavam duro, mas com lealdade.”
Em uma época na qual, além de Ademir, havia Zizinho [ex-Flamengo, Bangu e São Paulo], outro expoente da história do futebol brasileiro, as comparações eram inevitáveis. Para Ademir, o companheiro da fatídica Copa de 50 foi o verdadeiro craque daquela época. Modesto aquele Ademir. Zizinho por muitas vezes amargou chacotas após jogos do Flamengo contra o Vasco. Ademir foi o protagonista de uma incômoda escrita na década de 1940, quando o Flamengo foi um inveterado “freguês” do Vasco. Zizinho viu tudo aquilo bem de perto.
Sport, Vasco, Fluminense… nos clubes, Ademir conheceu a glória. Na seleção brasileira, também, até o terrível 16 de julho de 1950, dia em que o Brasil perdeu [2 a 1], no Maracanã, a Copa do Mundo para o Uruguai. “Queixada” saiu do torneio por cima, foi o artilheiro da competição com nove gols, quatro deles na goleada de 7 a 1 aplicada na Suécia. Foi Ademir quem fez o primeiro gol oficial no Maracanã, na estreia do Brasil contra o México. O oba-oba, sobretudo da imprensa, em relação à “imbatível” seleção brasileira, cuja base era o “Expresso da vitória” vascaíno, era o indício de que a soberba, um pecado capital às vezes mortal, seria o ocaso do time dirigido pelo técnico Flávio Costa. A pressão, inclusive política, foi intensa sobre Ademir e seus companheiros da seleção. “Após a perda do título mundial, em 50, a reação do Ademir foi a pior possível. Ele ficou enclausurado e não queria papo com ninguém. Foi para Cambuquira, onde ficou descansando”, disse ao jornalista e radialista José Rezende o irmão dele, Ademilson de Menezes. Ao Rezende, ele também contou sobre a chegada do craque ao Rio. “Quando Ademir veio para o Rio, trouxe toda a família. Éramos sete irmãos, cinco homens e duas mulheres. Ademar, Ademir, Ademilson, Ademilton, Ademis, Odenilda e Odemice. Todos os homens jogavam bola. Ademir era magrinho e o pior. Mas ele insistiu em jogar futebol, coisa que nós não fizemos. Nós fomos trabalhar e largamos o futebol. Ademir praticamente nunca trabalhou. O trabalho dele foi a bola.”
A Copa se foi, mas Ademir não perdeu a popularidade. No mesmo ano do campeonato mundial, o laboratório Bayer fez uma pesquisa de opinião pública para descobrir qual o maior jogador de futebol brasileiro da época. Ademir foi o “eleito” com impressionantes 5.304.935 votos, quase um milhão e meio a mais de votos que elegeram, três meses após o fracasso na Copa, Getúlio Vargas como presidente do Brasil.
Foram muitas as crianças batizadas com o nome do craque do bigode fino, cabelos com gomalina e que só calçava sapatos bicolores. Nos idos de 1950, uma legião de vascaínos nasceu ou cresceu naquela época se deslumbrando com as passadas largas e os gols de Ademir.
Há uma emocionante história de quando a seleção brasileira estava concentrada na Casa das Pedras, no Alto da Boa Vista, no Rio, se preparando para a Copa do Mundo. Um desesperado pai pediu ao técnico Flávio Costa que liberasse Ademir para visitar o filho no hospital porque o menino só entraria na sala de cirurgia caso Ademir fosse visitá-lo. “Queixada” foi ao hospital, o garoto operou e foi salvo. “Flávio Costa me chamou num canto: ‘Você vá lá com o médico da Seleção, num carro da CBD. Veja a situação e volte.’ Depois de sair da concentração, fui pensando dentro do carro: ‘Pode ser algum conhecido, pode ser algum pernambucano.’ Quando cheguei ao hospital, vi que era um garoto meu admirador, que gostava de futebol de botão. O menino veio, me beijou e disse: ‘Doutor, pode operar.’. De volta à concentração, não consegui dormir. Passei a noite em claro. Fiquei pensando: ‘O que é que eu sou? Um santo? Eu sou Deus?’ Aquilo me impressionou.”
Exatos 20 anos após a inusitada história, Ademir, já comentarista de futebol, estava numa fila do Citybank para trocar cruzeiro por dólar. O dinheiro cobriria sua estadia no México durante a Copa de 70. Mas alguém na fila — um rapaz com presumíveis 30 anos — o segura pelo braço e pergunta: “Você lembra de um senhor que em 50 foi buscar você lá na concentração do Brasil para ver um menino na casa de Saúde Santa Lúcia, em Botafogo?”. Era o garoto da sala de cirurgia, que se tornara um bem-sucedido engenheiro. Com lágrimas lhe cobrindo as faces, Ademir recordou essa história à Geneton Moraes Neto. E também outra não menos surreal ao repórter Teixeira Heizer.
Quem nasceu por volta dos anos de 1940 ou começo dos 50 e se chama Ademir, não restam dúvidas: o pai, na principal das hipóteses, ou era vascaíno, ou um ardoroso fiel à seleção brasileira, da qual o Queixada era o ícone. “Teve um sujeito que me chamou para batizar o filho em 46. Fui lá, batizei. Ademir, é claro. Uma semana depois fui pro Fluminense. Apareceu o tal cara: ‘Quero desbatizar; você traiu o Vasco’. E mudou mesmo o nome do garoto. Um ano depois, quando voltei ao Vasco, não é que o cara foi me procurar para batizar de novo o mesmo garoto? Mas aí eu não topei mais.”
Esse era Ademir de Menezes, que teve uma unha do pé, perdida após uma pelada, guardada em um vidro pelo pesquisador Paulo Perdigão. “Relíquia, quem sabe, de um deus vivo”, deve ter pensado Perdigão.
A relação dos fãs com Ademir sempre foi marcada por uma idolatria fora do comum. Para as crianças que cresceram vendo-o jogar bola, nada no mundo seria tão importante quanto Ademir. “Estava jogando pelada na praia de Copacabana, em 1961, com umas 30 pessoas, quando levei uma bolada na cara e caí. Alguém me pegou e me levou para a água. Quando abri o olho, vi que era Ademir Menezes, que havia entrado no jogo sem que eu percebesse. Desmaiei na mesma hora”, narrou Perdigão, que, ainda criança, antes de torcer pelo Vasco, aprendeu a torcer por Ademir.
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Hoje, dia 8 de novembro, o meu ídolo Ademir de Menezes faria 95 anos, segundo registros de jornais, revistas e entidades, como a CBF. Mas o amigo Alexandre Mesquita alertou-me, e também pude conferir em uma ficha de cadastro no Vasco, que Ademir nasceu em 1921 e não em 1922. Faria, portanto, 96 anos. Outro dado curioso descoberto pelo Alexandre: a grafia do nome de Ademir e dos imrãos era o goleador máximo da Copa do Mundo de 1950 era o segundo de sete irmãos: Adhemar (nascido em 1920), Adhemyr (1921), Odhemylda (1923), Adhemylson (1924), Adhemylton (1925), Odemyde (1936) e Adhemys (193?). Apenas dois ainda estão vivos: Odemyde, que mora em Recife e tem 18 netos e 6 bisnetos, e Adhemylson, Vejam matéria no link: http://www.netvasco.com.br/news/noticias15/69354.shtml.
O texto acima integra a biografia do Ademir, que está no I volume (a Letra “A”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição da Livros de Futebol.com.
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