por Pedro Barcelos
Sempre ouça as palavras finais de um homem: elas têm poder profético. Ou melhor, nunca ouça as palavras finais de um homem: elas têm poder profético. Pior ainda se forem palavras de um jornalista do naipe de Euclides da Cunha.
O cenário não poderia ter nome mais irônico: Piedade. Era apenas mais um dia no Rio de Janeiro, já acostumado com as puladas de muro da esposa de Euclides. Ele era mais velho do que ela, viajava constantemente a trabalho e não tinha muito tempo para ela. Fora isso, ele nunca foi reconhecido por sua simpatia e cordialidade. “Os Sertões” vendeu muito bem e o jornal O Estado de São Paulo seguiu delegando coberturas distantes e complicadas ao célebre autor. A notoriedade foi tamanha, que Euclides chegou a ajudar na negociação do Acre, junto à Bolívia. Sem dúvidas, uma das grandes personalidades daqueles tempos. No entanto, a situação familiar seguia de mal a pior.
Ana Emília, que apenas queria ser amada, encontrou em Dilermando (um aspirante do exército) os carinhos que procurava. Os dois se amavam e tentavam viver escondidos, o que, de fato, não acontecia. Toda a capital federal sabia da relação, que inclusive chegou a acarretar em um filho, assumido por Euclides.
Essa relação extraconjugal de anos poderia ter tido um fim naquele domingo, 15 de agosto de 1909, porém o resultado foi bastante diferente.
Decidido a acabar com a vida do amante de sua esposa, Euclides saiu em direção ao bairro que, naquele dia, não vivenciou momentos piedosos. Dilermando estava descontraído na sacada de sua casa, acompanhando o movimento da rua, quando foi surpreendido pelo corno. O silêncio que precede o esporro foi interrompido pela profecia: “Vim para matar ou morrer”. Euclides conhecia bem o poder das palavras e sabia exatamente o que estava falando. Na campanha brasileira pelo Acre, provavelmente aprendeu com algum curandeiro que certas afirmações são incuráveis.
Dilermando correu para dentro da própria casa, em procura de defesa. Euclides entrou sem permissão na residência e encontrou Dinorah, o irmão mais novo de Dilermando e zagueiro do Botafogo. Vendo a arma nos punhos do jornalista, Dinorah tentou correr, mas acabou tomando três tiros. Um deles, o mais degradante, na coluna, logo abaixo da nuca.
Desacordado, não conseguiu ver o triunfo do próprio irmão sobre Euclides da Cunha, tampouco seu semblante de alívio por não precisar mais esconder uma relação amorosa de tanto tempo que de escondida não tinha mais nada. As vitórias enobrecem os homens, mas também os cegam. A euforia fez Dilermando não ter noção do estrago causado. Estes acontecimentos ficaram conhecidos nos jornais da época como a “Tragédia da Piedade”.
Alguns jornais da época enalteceram Dilermando, entendendo que o assassinato do escritor representava uma revanche contra os relatos de Euclides na Guerra de Canudos. Dilermando, um militar, traindo e matando um jornalista que, apesar de republicano assumido, havia denunciado os horrores de um massacre promovido pelo Governo. Era tudo que a imprensa pelega queria.
Euclides faleceu, mas deixou obras de valor histórico permanentes. Os feitos de Antônio Conselheiro e os estragos que o Governo causou contra seus seguidores jamais teriam tamanha notoriedade caso Euclides não escrevesse seu relato jornalístico. Suas obras continuam sendo lidas nas escolas até hoje, 111 anos após a Tragédia da Piedade. No final de contas, Euclides ainda vive. Então alguém precisava morrer.
O Futebol de Dinorah
Dinorah e seu irmão mais velho começaram carreira militar cedo. Dilermando tinha mais aptidão pelas serviços demandados, enquanto Dinorah preferia os esportes. Em 1906, o irmão mais novo começou sua carreira no Internacional (SP). Em 1907, foi campeão paulista e chamou atenção do América carioca. Em 1908, após duas vitórias sobre o Botafogo, Dinorah foi árbitro de uma partida amistosa entre Botafogo e Germânia (SP). Os laços entre o zagueiro e o clube já estavam firmados e Dinorah vestiu a camisa alvinegra pela primeira vez apenas um mês depois, em 12 de outubro de 1908.
No começou do ano de 1909 o vínculo só aumentou. Dinorah jogou e fez gol no jogo histórico contra o Mangueira: 24X 0, a maior goleada do futebol brasileiro até hoje. Contra o Haddock Lobo, jogou no ataque e marcou SEIS gols. Um craque. Exatamente uma semana após a Tragédia da Piedade e ainda com uma bala alojada na coluna, lá estava ele em campo contra o Fluminense, maior rival do Botafogo.
Apesar destes feitos, o ano de 1909 acabou favorável aos tricolores, mas em 1910 seria diferente. O Botafogo foi campeão carioca e recebeu o apelido de “O Glorioso”. Dinorah jogou 9 das 10 partidas naquele torneio imortalizado no hino de Lamartine Babo (hino corrigido apenas em 1996).
O ano de 1911 foi o mais importante de todos para o futebol carioca. Ali se definiram os alicerces e características marcantes de seus protagonistas. Porém, as complicações por conta da bala ainda alojada pioraram e Dinorah começou a atuar menos, participando de apenas três jogos pelo 1º time botafoguense. Em dois anos de clube, foram 29 jogos (21 vitórias; 4 empates; 4 derrotas), sendo 22 jogos com a bala alojada. Esses são números do primeiro time alvinegro, pois era comum na época jogos preliminares ou amistosos serem marcados com times alternativos. Sobre esses dados, infelizmente, não se tem conhecimento.
A Maldita Profecia
Fato era que Euclides da Cunha passará dessa pra melhor, sem dúvidas, porém a maldição continuaria e alguém precisaria sofrer. Dinorah começou a sofrer problemas motores por conta do projétil e precisou parar de jogar bola em 1911. Dois anos depois, foi retirar a bala, mas por conta de um problema médico ficou hemiplégico (perdeu o movimento em metade do corpo).
Transtornado com a situação e sem poder voltar aos serviços militares, vagou pelas ruas do centro do Rio de Janeiro em procura de esmola. Da glória de campeão carioca à mendigo, bastaram três anos. O esquecimento do primeiro guerreiro do futebol mundial foi mais rápido do que um mandato presidencial. A tortura psicologica causada por um incidente do qual ele não tinha a menor culpa foi enorme. Tentou se suicidar na Praia de Botafogo, mas nem para isso ele teve sucesso. Foi resgatado à contra-gosto.
Em busca de sua última missão, partiu para Porto Alegre, na esperança de encontrar o sossego final. No dia 20 de setembro de 1921, um domingo, se jogou no Rio Guaíba e morreu afogado. Levou consigo uma versatilidade e garra incomparáveis em campo, o título carioca de 1910, a sífilis, o alcoolismo e o esquecimento. Se Dinorah não acatou as próprias dores, creio que poucos, ou ninguém, também conseguiria.
A Decisão Purgatorial
Em 1916, Dinorah ainda soube de outra tentativa de assassinato contra seu irmão: desta vez feita por Euclides da Cunha Filho. Porém, Dilermando sobressairia outra vez e mataria o filho do jornalista.
Euclides deixou filhos, mas Dinorah deixou herdeiros. Em um esporte praticado basicamente por elitistas da época, este é o primeiro caso relatado de um campeão glorioso que cai no esquecimento popular e mendiga farrelhos pelos cantos da cidade. Euclides anunciou: “Vim para matar ou morrer”! Esta frase ecoa até hoje nos ouvidos de todos os jogadores que iniciam carreira no futebol: “é vencer ou morrer”. Muitos morrem e são esquecidos, assim como Dinorah, infelizmente.
O que era, até então, um esporte humano, passou a ter preposições sobrenaturais com aquele tiro sem piedade na coluna de Dinorah. Um campeão jamais poderia ser esquecido. Isso é irracional, é sobrehumano. É uma maldição! A maldição da qual não se basta ganhar, é necessário algo a mais. E é exatamente esta a crueldade posta a partir daquele fatídico domingo: a incógnita do que significa o “algo a mais”.
Seu falecimento completa 99 anos no dia de hoje. Aposto que daqui a uma ano, no centenário de sua morte, a data passará despercebida por grande parte dos torcedores de futebol, incluindo os do Botafogo. Uma pena para Dinorah, seus familiares e a história do futebol brasileiro. E o pior: tudo isso por culpa de um chifre!
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