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1921: NASCIDO PALESTRA, FORJADO CRUZEIRO

2 / janeiro / 2020


Juro, esses 99 anos não foram fáceis.

Nesse meu quase um século de vida, vi muita coisa do mundo e isso também me afetou.

O início foi bem difícil, trabalhadores e comerciantes italianos, vindo em busca de uma melhor vida nas primeiras décadas do século passado pelas terras das Minas Gerais resolveram proclamar meu nascimento em 02 de janeiro de 1921. Deram-me o italianíssimo nome de Società Sportiva Palestra Italia, xará do meu primo mais velho paulista. Na época, na periferia da capital mineira: Barro Preto. Hoje, ainda moro nesse bairro que já faz parte da área central de Belo Horizonte. A cidade cresceu muito. Cresci com ela, quase que de mãos dadas. Nasci com as cores da bandeira italiana: verde, vermelho e branco.

Passei minha infância e adolescência sob a flâmula italiana. Até que, quando iniciei a vida adulta, aos 21 anos, iniciou uma perseguição a mim e a meus compatriotas italianos. Por conta da Segunda Guerra Mundial, o governo Vargas me obrigou a mudar meu nome e passei a me chamar: Cruzeiro Esporte Clube. Sem esquecer as origens, meu uniforme agora remetia-se à Azzurra, à seleção bi campeã mundial, camisa azul e short branco. No peito, a primeira referência ao hemisfério sul, onde nasci: cinco estrelas da constelação Cruzeiro do Sul.

Em 1965 conheci o meu grande amor, imponente e nascido em Belo Horizonte, aos arredores da Lagoa da Pampulha, sob os lindos traços de Oscar Niemeyer: o Mineirão, conhecido atualmente também como Toca da Raposa 3.

Sabe aquelas estrelas no peito? Sabe o Mineirão? Pois é: agora o céu é o limite.

Quando meu amor fez 1 ano de idade, eu tive a minha primeira grande glória: Taça Brasil, em 1966. Uma glória que me mostrou para o mundo, ganhamos de 6 gols do Santos de Pepe, Coutinho e Pelé. Um verdadeiro show, com Raul, Piazza, Dirceu, Tostão, Natal, entre outros. Eram moleques que tinha arte com a bola nos pés. Eles apresentaram o mundo para mim, ou melhor: me apresentaram para o mundo.

Os cinco primeiros anos do Mineirão foram só vitórias minhas. Penta campeonato só para mostrar que eu já estava maduro para voar mais alto.

Contudo, 10 anos após ganhar do Santos de Pelé, fui disputar minha primeira final internacional. Era muito difícil jogar contra argentinos e uruguaios por essas terras da América do Sul. Depois de dois jogos duros no Mineirão e no Monumental de Nuñes, me mandaram lá para Santiago, no Chile, para decidir quem seria o rei da América em 1976. Aquele River Plate era um time malandro, marcaram um gol em mim cobrando uma falta sem o juiz apitar, acreditam?! Eu tinha um lateral-direito que tinha um foguete em sua perna direita chamado Nelinho. E, aos 43 minutos do segundo tempo, com uma falta frontal, em um jogo que estava 2 a 2. Mas vocês não acreditam, um bailarino vestido de azul, não quis esperar o Nelinho. Quando Nelinho foi virou de costas para pegar distância, Joãozinho não esperou o árbitro, não esperou Landaburu arrumar a barreira: enquanto o goleiro estava arrumando a barreira em uma trave, ele colocou a bola no ângulo do gol, no lado oposto ao goleiro. Aquilo foi épico.

Os anos de 1980 não foram os melhores. Mas nos anos 1990, iniciou uma nova era. Poderia ficar aqui contando as tantas glórias contra Racing, River Plate, Velez Sarsfield, Colo-Colo, Peñarol, Nacional de Montevideu, ninguém me segurava. A gente juntava todos os campeões da Libertadores até então e fazia a nossa panela, uma campeonato só com os grandes da América do Sul: a Supercopa da Copa Libertadores da América. Ganhei duas vezes seguidas, em 1991 e 1992. O primeiro ano com show de Charles e Mario Tilico, enquanto no ano seguinte a dupla era Renato e Roberto Gaúcho.

Em 1993, ganhei a minha primeira Copa do Brasil, em cima do Grêmio. Ali, iniciava a busca do recorde: quem seria o Rei de Copas do Brasil?

Em 1996, eu já conseguia o bi campeonato da Copa do Brasil. Depois de destruir Pelé, Pepe e Coutinho, o que seria Luizão, Cafu, Rivaldo e Djalminha? Realmente não ganhamos de seis. O Vasco já havia levado seis na “carcunda” (como dizem aqui em Minas), nas oitavas de finais. Aliás, esse “seis” sempre foi um número cabalístico na minha história… Foi sofrido, mas ganhamos de 2 a 1 dentro do estádio, acreditem ou não, o estádio chamado “Palestra Itália”, contra nosso primo paulista que também mudou de nome e se chama Palmeiras.

Aquele meu amor da Pampulha tinha que ter um recorde de público a altura. Final do campeonato mineiro contra o Vila Nova – um time da região metropolitana, de Nova Lima. 133 mil espectadores para ver Cruzeiro enfrentar na final o time que deixou um outro time da região metropolitana, de Vespasiano, em quinto no Campeonato Mineiro. Deixa eu confessar: aqui a gente chama o campeonato mineiro de campeonato rural… mas isso eu conto outra  hora. 

Em 1997, novamente a glória do maior da América do Sul. Disseram que não chegaria a lugar nenhum, depois de perder as três primeiras partidas. Tenho que confessar, era uma tarefa difícil. Consegui uma vitória épica contra o Grêmio em Porto Alegre, e depois venci os times peruanos do Alianza Lima e Sporting Cristal no Mineirão. Depois fui galgando vitória a vitória, até a grande final. Quem eu encontro lá? Novamente o Sporting Cristal. O jogo estava tenso, até que em uma falta para o Sporting Cristal, o goleiro Dida soltou a bola nos pés do atacante do time peruano. Em milésimos de segundos, o mundo parou. Dida recuperou-se rapidamente e conseguiu espalmar para fora aquela bola. Minutos depois, em um escanteio, a bola sobrou no pé direito do canhoto Elivélton. Ele chutou com a destreza de um canhoto com a perna direita (óbvio). Aquela bola estranha foi passando vagarosamente pelas mãos do goleiro peruano e o Mineirão virando aquela festa sem tamanho.

Para fechar o século XX, outra vitória épica na Copa do Brasil. Dessa vez, contra o São Paulo. Tínhamos que ganhar, mas perdendo até os 30 minutos do segundo tempo por 1 a 0. Dois gols muito rápido, sendo que o segundo foi uma falta “espírita”, por baixo da barreira, deixando o goleiro Rogério Ceni imóvel, já nos acréscimos.

Como vou contar esses meus últimos vinte anos de vida, com tantas glórias a serem contadas?

Em 2003, o Talento Azul, usando a camisa 10, emprestada por Dirceu Lopes, como o próprio Alex disse. Ganhamos todos os campeonatos nacionais possíveis: rural, Copa do Brasil e Campeonato Brasileiro. Não queria tirar onda, mas nem esse Flamengo de  2019 conseguiu tantas vitórias em um ano como eu consegui em 2003.

Em 2008 e 2009, vale a menção de que no primeiro jogo da final do rural contra o time de Vespasiano, ganhamos de 5 a 0: um gol para cada estrela.

Em 2011, eu estava “voando” no primeiro semestre. O técnico do Peñarol, Diego Aguirre, chegou a me apelidar de Barcelona das Américas. Mas  acho que não deu muito certo. No final do ano, estava brigando contra o rebaixamento. O último jogo? Contra o time de Vespasiano. Não poderíamos empatar. Meus dois principais guerreiros não jogariam a última batalha: Montillo e Fábio. Meus outros guerreiros entraram com a faca nos dentes. Roger comandou uma vitória épica no estádio de Sete Lagoas, enquanto meu amor estava sendo reformado para Copa do Mundo. Vocês lembram daquele número cabalístico? Pois é… ganhamos de 6 a 1. Fizemos uma tatuagem no time de Vespasiano, uma marca que nunca cicatrizará.

Em 2013 e 2014, fizemos um time que jogava para frente, assim como a escola de Dirceu e Tostão me ensinou. Em 2017 e 2018, conseguimos ganhar mais duas Copas do Brasil.

Contudo, em 2018, colocaram uns empregados dentro da minha casa que só me deram veneno e remédios que me deixavam com alucinações e fora de mim.

Se o mundo tinha me mudado, a história do político brasileiro entrou em meu corpo: comprando apoio de sócios, de torcidas organizadas, da imprensa até que uma hora, o dinheiro acabou.

Em 2019, apareci na TV. Mas não com minhas glórias, mas nas páginas policiais. Uma quadrilha tomou-me de assalto. Com mandos e desmandos. A polícia veio me visitar. Para os amigos tudo, para os inimigos, nada. Tudo que eu comprava e deixava na dispensa, não existia quando abria os armários. E agora, nos meus 99 anos, o que será de mim?

Parece que a minha torcida viu os meus gritos nos fundos do hospital. Infelizmente tive que ser rebaixado para ouvirem a minha voz. Alguns médicos disseram que eu estava em estado terminal, um enorme câncer havia alastrado por mim em todos os departamentos.

Qual seria a saída? Quimioterapia? Efeitos colaterais fortíssimos.

Mas para você saber, não fui rebaixado. Empurraram-me no desfiladeiro, sem dó, nem piedade. Eu estava sob cuidados de pessoas que não eram incompetentes. Elas sabiam o que estavam fazendo. Agora estão ricas. Caso pensado.

Hoje, no meu aniversário, todos vieram me abraçar. Filas nas lojas pelo meu novo manto. Ações por todos os lados para me recuperar. Homens corretos e honestos, empreendedores da vida, estão agora cuidando de mim. Não será fácil. Não mesmo. Mas me recuperarei mais rápido que vocês imaginam e continuarei com minha caminhada rumo à glória.

Abraço a todos,

Cruzeiro Esporte Clube, O Cabuloso.

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