BLITZ NO BAÚ
texto: Sergio Pugliese | fotos: Marcelo Tabach | vídeo: Simone Marinho | edição do vídeo: Izabel Barreto
A estreia no Maracanã colore a memória até hoje. Artistas x Cantores, preliminar de Flamengo e Amigos de Raul Plassmann, despedida do goleiro, em dezembro de 1983. No vestiário, 50 disputando 11 vagas. Camisa 8 garantida, avançou no corredor em direção ao campo, subiu as escadas e surgiu no gramado acenando para as arquibancadas, ainda vazias. Imaginou a galera gritando o seu nome: “Evandro! Evandro!”. Virou criança! Comparou sua altura à das balizas, alisou a grama, sentiu a textura das redes e benzeu-se em reverência ao maior estádio do mundo. Que sonho! Convidou Charles Negrita, do Novos Baianos, para a foto e guardou o registro sagrado no baú de preciosidades. No estúdio de Evandro Mesquita, Paulo Cezar Caju ouvia e gargalhava, ouvia e gargalhava, ouvia e gargalhava. E assim foi durante toda a manhã, no reencontro promovido pelo Museu da Pelada, entre os amigos tricolores que não se viam há seis anos.
– O Caju me deu muitas alegrias dentro e fora de campo! – vibrou Evandro.
Para evitar comparações, Caju, elegante, preferiu não lembrar a sua estreia no Maracanã quando, aos 17 anos, estreou pelo Botafogo contra o América e marcou três gols. Simples, assim. Mas nem precisava, Evandro contava tudo sobre PC. Recordou suas atuações pela Máquina Tricolor, em especial a partida Flu 1 x 0 Bayern, gol contra de Muller, que marcou o retorno de Caju ao Brasil vindo do Olympique de Marselha, mas também não deixou de fora as peladas no Caxinguelê, tradicional campo no Jardim Botânico, fechado recentemente.
– No Caxinguelê, passamos bons momentos de nossas vidas!!! – confirmou Caju.
Mas o tricampeão do mundo só não imaginava a surpresa preparada por Evandro, que aumentou o som e apresentou a canção “Nunca Joguei com Pelé”, uma das faixas de seu próximo cd, que será lançado no próximo semestre, liberada com exclusividade para o Museu da Pelada. Caju e Caxinguelê são citados!!!! Olha um trechinho aí: “Aí, vou dizer: Caxingelê, meu campo favorito. Lá deito, rolo, grito, corro, chuto e xingo… Cada drible tinha um nome Kleber, Pintinho e Samarone. Paulo Cezar Lima, o P.C., jogando uma beleza, apresentava o churrasco e batia a sobremesa”. Bem, essa história de “bater a sobremesa” arrancou novas gargalhadas de PC, mas, esqueçam, o craque está em outra, purinho, purinho, geração saúde!
– Continua jogando uma bolinha, parceiro? – perguntou Caju ao final da música.
Aí, Evandro franziu a testa, acusou o golpe. Há tempos os joelhos do craque vinham pedindo arrego e, para tristeza geral da nação peladeira, o vocalista da Blitz anunciou sua aposentadoria do futebol.
– Maldito rato! – resmungou ele.
– Que rato é esse? – quis saber, PC.
Na verdade, um camundongo invadiu a casa de Evandro e provocou uma perseguição de cinema. Após pisar em falso num degrau, os joelhos rangeram, o roedor fugiu e as chuteiras foram penduradas. E dá-lhe gargalhada do PC!!!
– Precisava fechar a carreira com chave de ouro, então resgatei fotos, crônicas e vídeos sobre peladas e usei tudo em meus dois últimos DVDs – revelou.
Afastar-se da bola não é fácil. Ela o acompanha desde os tempos do colégio estadual André Maurois. O moleque sempre foi o craque da turma e matou muita aula para correr atrás da redonda. E cresceu aprontando. Certa vez, no final da década de 70, já em pleno sucesso com a peça “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, deixou as parceiras de palco, Regina Casé e Patrícia Travassos, com os nervos a flor da pele quando resolveu trocar o ensaio por uma pelada. Mas, convenhamos, o convite era irrecusável. Os três saíam da praia e deram de cara com ele, sempre ele, PC Caju, estrela da seleção brasileira, que o convidou para um racha com Bob Marley no campo de Chico Buarque. Quem negaria?
– Regina e Patrícia falaram que se eu fosse iria ferrar tudo – recordou o centroavante habilidoso.
Não teve jeito e mais uma vez ele chutou o balde pela bola e, tempos depois, escreveu uma divertidíssima crônica: “… Bob tava com a bola… Pedi… Ele rolou para mim, eu levantei fiz uma firula e devolvi para ele, que gritou Yeah, man! e me abraçou sorrindo com todos os dentes de Marley pra fora!”. O futebol sempre inspirou Evandro. “Nunca Joguei Com Pelé”, um resumão da carreira futebolística, foi escrita há tempos, mas só agora resolveu lançá-la: “Joguei com malandro e otário, com Renato, Ronaldo e Romário, Toninho, Nelinho e Búfalo Gil, Dadi, Du, Dé, Marreca, Rato e Jacaré, mas nunca joguei com Pelé!”.
– Agora estou feliz porque achei no meu baú, guardada há anos, uma fita cassete com uma gravação, que o Rei Pelé me deu para avaliar – comentou.
Evandro não jogou com Pelé, mas protagonizou lances geniais. E lamenta não ter registros para comprovar. Mas há testemunhas. Guaraci Valente, o Gaúcho, do Planet Globe, guarda na memória duas obras primas do parceiro, a primeira, no Maracanã, despedida de Raul Plassmann. Após belíssimo lançamento de Silvio Cesar, Evandro deu uma caneta humilhante em Eliezer “Cala Boca, Batista” Motta e disparou um petardo no ângulo do goleiro Félix, o Papel. A segunda, um golaço de bicicleta, pelo Light Futebol Show.
– Nem no Museu do Louvre vi algo tão lindo – resumiu Gaúcho.
Foram incontáveis dias de glória! Na última atuação, em partida beneficente, em Angra, Ricardo Rocha engraxou sua chuteira após mais um golaço. No Caxinguelê, palco preferido, perdeu a conta dos gols e pelo Fumeta, ao lado de Yet, Maurício Camelo, Marco Madalena, Ruban, Vinicíus Cantuária, Marcelo Costa Santos, Rodolfo e Brown, ganhou os dois primeiros campeonatos, nos concorridos torneios no campo de Chico Buarque, contra os times de Afonsinho, João Nogueira e Nelson Rodrigues Filho.
– Amigo, preciso ir. Se pudesse ficaria aqui o dia inteiro – lamentou PC.
Evandro fez cara de menino triste. Ao levantar-se, a estalada básica, a cara feia e a reclamação de sempre: “esse joelho é foda”.
Nunca Joguei Com Pelé
Aí, vou dizer: Caxingelê,
meu campo favorito
Lá deito, rolo, grito,
corro, chuto e xingo,
de segunda à domingo
Já joguei com Junior, Zico
Bebeto, Beline e Brito
Ney Conceição e Afonsinho
sempre deram moral
Geraldo, o Assobiador e Geraldo Mãozinha
Nunca joguei com Gerson, o Canhotinha
Cada drible tinha um nome
Kleber, Pintinho e Samarone,
Troquei altas tabelas com Beto Bial
passes, música e letras com Chacal,
Dionísio, Pedro, Peninha e ainda tinha
o jogo do bicho pra fazer fézinha
Neném, Batata, Adriano, Magal
e ainda por cima, no Caxinguelê
Paulo Cezar Lima, o P.C.
jogando uma beleza
apresentava o churrasco
e batia a sobremesa
Humberto do Botafogo
e Serginho da Portuguesa
Outro craque? Por que não dizê-lo?
Mauricio Camelo, jogava de fraque
Jorge Ben, Chico, Tide, Babá e Didito,
Fernandinho, Marcelo, Dadica e Joninha
Dia de pelada todo mundo vinha
Boleiro, bolão, a bola bolava bonito
Gonzaguinha e Vina da perninha fina
E a alegria de ser um eterno aprendiz
Marcelo, Braga, Pernil, Pepeu e Ruban
A resenha rendia até de manhã
Todo mundo sabia o caminho
Madalena, Luizinho, Leão, Japa e China
Ernani e o falecido Rubinho
Gente boa, gente fina
vapor do Santo Cristo
Tinha estilo, levava jeito
Morreu matando uma bala no peito
Quarenta e cinco do segundo tempo
última volta do ponteiro
não teve pelada, nublou
neguinho chorou o dia inteiro
Nuvem Cigana e o perfume do vento
Novos Baianos e Paulo Suprimento
trazendo alegria pra rapaziada
Baseado nos papos da arquibancada
Música, filosofia e gargalhadas.
Cerveja espumando champanhe
Sempre tinha um beque sem mãe
estilo argentino entrando de sola
o menino, chutava cabeça, pau e bola
Mas artilheiro guerreiro manca sorrindo
e depois do luxo da ducha, tá tudo lindo
até debaixo d´água alguns moicanos
pingavam pra manter a fé
joguei com Jair, Djair, Altair e Orlando Lelé
mas nunca joguei com Pelé
e acredite, Jair da Rosa Pinto e Dinamite
Washinton, Assis, Eder e Reinaldo
Uri Geller, Silas, Silva e Clodoaldo
Rildo, Roger, Regis, Nunes, Andrade e Adílio,
com Ademir não. Nem com o pai, nem com o filho.
Delei, Denílson, Edu e Adão
Nunca joguei com Tostão
Tenho marcas no coração
das viradas históricas
jogadas antológicas
algumas mágicas, outras trágicas.
Não tinha pra ninguém
“Fumeta” e o “Passa A Bola, Meu Bem”
a bola rola desde menino
com Carlos Alberto, sim
mas nunca com Rivelino
Com dezoito, vinte, vinte e poucos
todo mundo é louco e atleta
Já fiz gol de falta
de cabeça e bicicleta
Areia, grama ou tábua corrida.
Caxinguelê era de terra batida
tinha o bar do Canário no fim
a vaca da grana do seu Joaquim
no meio do ar puro do horto
Só dava vaga quem saía morto
Lá perdi unhas e um joelho
Nunca joguei com Julinho Botelho
Joguei com Beto, Neto, Moreno
Branco e Preto
Torci pé, quebrei pulso e dedão
fui expulso por todo juiz ladrão
Saí com o nariz vermelho
numa dividida com Casé
Joguei com malandro e otário
comRenato, Ronaldo e Romário
Toninho, Nélinho e Búfalo Gil
Dadi, Du, Dé, Marreca, Rato e Jacaré
Mas nunca joguei com Pelé
No morro, no subúrbio, na praia
Lug, Ludovico, Necrose e Samambaia
Charles Negrita apresentava um
pra lua que nascia bonita
Jogávamos por música, por poesia
pela arte, pela bola, periferia.
Plena harmonia, zona sul, zona norte
dividíamos a conta, a ponta e a simpatia.
É a tal história… tá tudo na memória
Saudade é bom, mas as vezes dói
como bola na barreira que arde, incha.
Já joguei com muito Mané
mas nunca joguei com Garrincha
Nunca joguei com Pelé
ele era uma pantera de outro planeta
metia lençol, na gaveta, de placa, de letra
eu queria… Só pra falar:
“– Vai, Pelé! tô contigo, Pelé!
se quiser toca, Pelé.
golaço, Pelééé!”