A SOMBRA DE GARRINCHA
entrevista: Sergio Pugliese | texto: André Felipe de Lima | fotos e vídeo: Daniel Planel
Todo vascaíno que acompanhou o time no final dos anos de 1950 sabia de cor os nomes dos defensores do cruz-maltino: Paulinho de Almeida, Bellini, Orlando Peçanha e Coronel. Selecionáveis, “scratchmen”, davam o sangue pelo Vasco da Gama e pela seleção brasileira. Um deles, Antônio Evanil Silva, ou simplesmente Coronel, recebeu uma missão que não era das mais fáceis. Quando enfrentava o Botafogo, teria de marcar ninguém menos que Garrincha, o que fazia do jeito que podia. “O Garrincha era imarcável!. Eu era o boi de piranha. O primeiro a dar combate. Quando me virava, havia mais dois ou três jogadores do Vasco caídos”, conforma-se Coronel, durante a primeira entrevista que fiz com ele, em 2009, para o documentário Simplesmente passarinho, sobre a vida do Mané.
O reconhecimento da bravura do Coronel em campo veio do próprio “algoz”, já que Garrincha sempre disse ser o vascaíno um de seus melhores marcadores. Após exatamente 10 anos, reencontrei Coronel graças ao Museu da Pelada. Batemos um longo papo e o craque narrou muitas histórias sensacionais dos tempos de jogador.
Defini-lo como um de seus melhores marcadores foi, obviamente, gentileza do Mané, porque Coronel, quando podia, sentava a pua no ponteiro. Só decidiu parar com as bordoadas quando conviveu com Garrincha na concentração da seleção brasileira que disputou o campeonato sul-americano, em Buenos Aires, em 1959. Orlando Peçanha e Bellini, dupla de zagueiros do Vasco, perguntaram ao Coronel porque ele não marcava mais o Garrincha como antes. Ouviram de um renovado lateral: “Ele agora é meu amigo e não consigo bater nele. Só lhe dou umas cabeçadas na nuca. Ele fica zonzo e me deixa em paz por uns minutos.”
Naquele torneio sul-americano, Coronel era reserva de Nilton Santos, que se machucou logo na estreia diante do Peru. No jogo seguinte, contra o Chile, Coronel assumiu a vaga. Na final, contra os donos da casa [os portenhos], Nilton recuperou-se. Mas, acatando pedido do titular, o técnico Vicente Feola manteve no time o lateral vascaíno, que vivia a sua melhor fase como jogador. Um ano antes, nos meses que antecederam à convocação para a Copa do Mundo, na Suécia, Coronel era o nome certo para a reserva de Nilton Santos no Mundial. Uma contusão impediu-lhe de realizar o sonho de disputar a Copa. Em seu lugar, Feola convocou Oreco. “Foi uma grande frustração”, confessou. Mas não havia tempo para lamúrias. Garrincha o esperava no Maracanã para antológicos embates.
A perseguição ao Mané no campo era tão intensa que o radialista Oduvaldo Cozzi contou o número de vezes que Coronel puxou a camisa de Garrincha em um jogo do Vasco contra o Botafogo. “Foram 23 vezes. Por isso o Cozzi, lembrando que Mané chamava todos os seus marcadores de ‘João’, passou a me chamar de Papa João XXIII”, lembrou Coronel. Só mesmo o imponderável para marcar um gênio da bola como aquele. “Houve um lance em que Garrincha tentou passar por mim. Nós dois caímos. Garrincha em cima de mim. Mané, fazendo catimba, não saía de jeito algum. Eu já estava com falta de ar. Dei-lhe uma mordida na barriga e Garrincha levantou imediatamente. Com ele, só assim mesmo. Não podia dar colher de chá.”
Apesar dos dribles do Mané, Coronel foi um dos melhores laterais-esquerdos do Vasco, pelo qual jogou de 1952 e 64. Nasceu em Quatis, no dia 27 de janeiro de 1936. Desde pequeno usava um boné, que — garante ele — rendeu-lhe brincadeiras dos amigos de infância e, inevitavelmente, a “patente”.
Chegou a São Januário ainda rapaz. Os primeiros meses na Colina deixaram o menino do interior embasbacado. Benzia-se diante da estátua do almirante português Vasco da Gama, imaginando sê-la a de São Januário. “Fazia isso sempre que passava em frente à estátua até que um porteiro perguntou por que fazia aquilo. Respondi que era um homem de fé. E que estava diante do ‘padroeiro’ do Vasco. O camarada riu e explicou: ‘Rapaz, esse aí é o Vasco da Gama….’. Fiquei muito sem graça.”
A fé de Coronel colocou-o em outra situação embaraçosa. Sabe-se que o Vasco sempre foi um clube de grande devoção católica. Coronel seguia à risca essa linha. Não só benzia-se diante da estátua do almirante, como acendia muitas velas. Uma delas, acendida no dia de jogo contra o Botafogo de Garrincha, quase ateou fogo à imagem da santa exposta no vestiário. “Foi um corre-corre danado. Queriam saber quem foi o responsável pelo fogo. Imagine, botar fogo na santa? Nunca descobriram, graças a Deus.”
O jovem Coronel não imaginava o que lhe reservava o futuro. Glórias, naturalmente — foi campeão carioca em 1956 e 58 e do torneio Rio-São Paulo de 58 —, mas também difíceis missões nas quatro linhas. Além de Garrincha a tirar-lhe o sossego, havia Telê, do Fluminense, Dorval, do Santos, e Joel, do Flamengo. Em compensação, ao seu lado estavam os craques da zaga, Sabará, Pinga e Vavá.
Com Sabará, emérito gozador, viveu uma situação inusitada durante a excursão do Vasco ao México, em 1959, para a disputa de um octogonal internacional. Ao passear pelas ruas da cidade mexicana, Coronel foi abordado por um rapaz que vendia uma caixa de “joias” por módicos 500 dólares. O jovem insistiu tanto que Coronel decidiu comprar a caixa. Nela, um portentoso anel despertou seu interesse. Colocou-o imediatamente no dedo. O vendedor?… já estava longe, feliz da vida, contando as verdinhas.
No hotel em que estava hospedada a delegação vascaína, Coronel fazia questão de mostrar para todos os companheiros o anel que comprara com outras “joias” por uma ninharia. No dia seguinte, reparou que o dedo estava todo verde, cheio de zinabre. Sabará ao constatar o desespero de Coronel, tratou de colocar mais lenha na fogueira:
— Ô, Coronel… quando fica assim, verde, não tem outro jeito. Vai cair mesmo.
Afoito, Coronel correu para o banheiro e tentou desesperadamente tirar o zinabre do dedo. “Foi um custo… e ainda tive de aguentar a pilhéria do Sabará até a volta do Vasco ao Rio”, recordou Coronel.
Após o Vasco, o ex-lateral vascaíno rodou por alguns clubes, dentre eles a Ferroviária, de Araraquara, e o Unión Madallena, da Colômbia. Parou de jogar em 1971.
Nos tempos de Vasco, Coronel casou-se e teve filhos. Anos depois, separou-se da esposa e hoje vive em Quatis, sua terra natal, ao lado da irmã, dona Dinéa, e de sobrinhos.
A família sempre esteve muito presente na vida do Coronel. A mãe e o pai, sobretudo. O pai, por exemplo, foi sua grande referência de retidão. Mas um drama marcou a vida do Coronel quando ainda era apenas um menino. Ele mesmo narrou a história a um repórter da antiga Revista do Esporte:
“Eu tenho um grande drama na vida, sabem? Um drama que o destino marcou com sangue numa cena pavorosa, de horror indescritível, e que jamais se apagará da minha memória. Embora sempre me seja penoso recordaar esses momentos de desespero pelos quais passei, vou contar como foi: havia lá em Quatis um desordeiro perigoso, assassino frio, que andou fazendo uma série de estripulias na cidade. Papai trabalhava na polícia como investigador e recebeu ordem de expulsá-lo. O homem, entretanto, resolveu não obedecer à intimação e vingar-se de papai de maneira sanguinária e covarde. O crime ocorreu a poucos metros de nossa casa, no dia 31 de agostos de 1951. Papai ia saindo de casa rumo à delegacia quando, inesperadamente, surgiu o criminoso de revólver em punho. Eu e minha irmã mais velha, Maria José, que estávamos encostados ao portão, não tivemos tempo sequer de gritar, advertindo papai, tão rápida foi a cena. Com os olhos esbugalhados assistimos a tudo.”
Naquele instante do depoimento, segundo o repórter, Coronel respirara profundamente antes de prosseguir recordação tão dramática:
“Papai parou aturdido, mas só teve tempo de levar a mão ao coldre de sua arma. O assassino disparou primeiro e ele caiu de borco [de barriga], esvaindo-se em sangue. Eu e a mana gritamos e corremos para junto de papai. Ela chegou primeiro e recebeu a segunda bala, certeira no coração. Amparei-a na queda e ela morria em meus braços quando o criminoso decidiu completar a obra, desfechando sobre mim o terceiro tiro. Fui atingido em pleno peito, a poucos centímetros do coração, e tombei sobre o corpo de minha adorada irmã, Maria José. Deus não quis que eu morresse também. Os dias que se sucederam foram de dor e desolação. A alegria desapareceu para sempre de nossa casa, até então um verdadeiro paraíso de felicidade, dando lugar ao mais completo luto. Mãezinha chorava dia e noite, beijando uma fotografia grande da mana. Papai se mantém até hoje em sua cadeira, imóvel e triste.”
A tragédia na família de Coronel foi devastadora, mas a vida precisa continuar. Coronel tocou-a adiante ao se tornar marido, pai também e um grande homem, um grande profissional. Um ídolo de milhões.
Mesmo após o fim da carreira de jogador, Coronel sempre esteve presente no Vasco, acompanhando de perto as divisões de base do clube da Colina e os “brotos” que se tornariam ídolos como ele, dentre os quais Roberto Dinamite. “Com o futebol, consegui ajudar minha família. Meus pais viveram com mais conforto e pude ver minhas irmãs se formarem.”
Os amigos do passado guardam boas memórias de Coronel. Como o ex-meia-esquerda dos juvenis do Vasco nos anos de 1950, Paschoal Rapuano, que o reencontrou quando o entrevistamos para o filme sobre Mané: “Eu era o titular do juvenil do Vasco e, provavelmente, o futuro marcador de Garrincha. Machuquei-me e Coronel pegou a vaga. Coronel, grande amigo, que só pude reencontrar agora, 40 anos depois de nosso último encontro, nos anos de 1960.”
Sorte ou não de Paschoal, quem levou a fama de “João” do Mané foi Coronel. Após mais de 50 anos, muitos se lembram dele como o grande jogador vascaíno que por pouco não parou Garrincha. “Jogava meu feijão com arroz. Às vezes funcionava contra Garrincha. Às vezes…”